Brasileiro conta como fotografou morte de jovem palestina por soldados de Israel

Publicado em 22/10/2015 - 18:57 Por Eliane Gonçalves – Repórter da EBC - São Paulo

O fotógrafo brasileiro Marcel Leme, 30 anos, registrou, em setembro, a execução de uma estudante em um posto de controle de Israel na cidade palestina de Hebron. A jovem árabe Hadil al-Hashlomon, 18 anos, foi acusada de tentar atacar, com uma faca, os soldados israelenses que faziam a segurança do local.

As imagens, captadas em um intervalo de quatro minutos entre a abordagem militar e a queda da estudante no chão, causaram polêmica e contradizem a acusação de Israel. Nas primeiras fotos, uma mulher vestida de preto aparece a mais de dois metros de distância de soldados que carregam armamento pesado. Não há sinal de resistência ou de possível ataque da mulher. Na sequência, ela aparece caída no chão com sangue nas costas.

Diversos jornais estrangeiros – entre eles, o britânico The Guardian, os norte-americanos Daily Mail e New York Times e a principal agência de notícias do Oriente Médio, a Al Jazeera, – publicaram as fotos e deram destaque ao tema.

Na primeira entrevista à imprensa brasileira desde a divulgação das fotos, Marcel Leme garante que a jovem não carregava uma faca e questiona a postura de Israel de usar o simples porte de faca como justificativa para atacar a população palestina.

A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) entrou em contato com o governo de Israel solicitando esclarecimentos sobre o episódio da morte da jovem palestina. O consulado do país em São Paulo disse que enviou as perguntas ao porta-voz do Exército de Israel e que aguarda uma resposta. O consulado enviou também um documento com o registro de 35 ataques a faca, de palestinos contra israelenses, nos meses de setembro e outubro deste ano. Segundo o registro, três israelenses e 20 palestinos morreram em decorrência desses ataques. 

O fotógrafo viveu três meses na cidade de Hebron – entre julho e setembro - como observador de direitos humanos de uma organização não governamental (ONG). Ele prefere não revelar o nome da ONG por receio de que a instituição seja impedida, pelo governo israelense, de continuar suas atividades no território da Palestina.

Apesar da repercussão do trabalho, Marcel é cético em relação a mudanças na relação entre Israel e Palestina. “Crime, como o que eu testemunhei, é só mais um. Eles continuam acontecendo”, diz. Desde o último fim de semana, pelo menos seis pessoas morreram na cidade de Hebron. Quatro delas tinham menos de 18 anos.

Paulistano, Marcel Leme é formado em geografia e começou a trabalhar como fotógrafo, em 2006, em assessorias de imprensa. Ele conta que viajou a Israel e à Palestina como turista, em 2013, e que ficou incomodado com o que viu – desde cidades cercadas por muros a aprisionamento de crianças. Por isso, resolveu se engajar em movimentos humanitários associados aos direitos dos palestinos e voltou a Israel em julho de 2015, já como observador de direitos humanos.

Desde que as imagens da execução foram divulgadas, ele evitou conceder entrevistas à imprensa brasileira. “A ideia era esperar a poeira baixar”, explica.

Leme autorizou, por escrito, a publicação na Agência Brasil das fotos tiradas em setembro em Hebron, mas fez uma ressalva: “não autorizo a divulgação de fotos que contenham imagens da minha pessoa”.

Um mês depois de ver o assassinato de uma mulher palestina e de ver suas fotos rodarem o mundo, ele aceitou conversar com a equipe de reportagem da EBC.

 

Veja os principais trechos da entrevista abaixo:


Agência Brasil: O que aconteceu no dia em que você fez essas fotos?
Marcel Leme: No dia 22 de setembro, eu estava no checkpoint 56, em Hebron, acompanhando crianças palestinas que iam para a escola. Algumas vezes, no meio do caminho, elas são atacadas por colonos [israelenses] ou revistadas por soldados. Exatamente às 7h43 da manhã, uma menina palestina de 18 anos atravessou esse checkpoint do lado palestino para o lado que está ocupado pelos soldados israelenses. Na hora que ela atravessou, os soldados ficaram totalmente assustados. Ela estava toda coberta de preto, uma roupa típica árabe. O soldado começou a gritar para que ela parasse, abrisse a bolsa e mostrasse o que tinha dentro. A revista é um procedimento de praxe nos checkpoints. Quando ela fez o movimento para tentar abrir a bolsa, os soldados começaram a atirar [sem acertar a jovem]. Inicialmente, eram dois soldados. No momento que eles começaram a atirar, vieram mais dois. Ficaram quatro soldados ali. Havia um homem palestino que estava chegando ao checkpoint para atravessar no sentido oposto. Ele parou atrás da menina e tentou pedir que os soldados parassem de atirar. Tentou explicar para a menina o que os soldados queriam. Eles falavam hebraico e ela era palestina, falava árabe. Mas os soldados continuaram atirando. O homem palestino se afastou. A menina atravessou para o outro lado da cerca, para o caminho que leva ao lado palestino, para tentar ir embora. Mas eles continuaram atirando. Dez balas acertaram o corpo dela.

Agência Brasil: Na época, o Exército de Israel disse que a menina estava com uma faca, que tentou atacar...
Leme: Não. não tinha nenhuma faca e ela sempre manteve uma distância de 2 a 3 metros dos soldados. Nunca chegou perto deles. Existe uma câmera no checkpoint que filma tudo o que acontece. Não sei porque o exército israelense não quis mostrar esse vídeo.

Agência Brasil: Havia pessoas fortemente armadas no local... Você sentiu medo?
Leme: Senti medo, mas eu tinha esse sentimento: eu sou um observador e tenho que cumprir meu papel, não posso me esconder ou sair correndo. Meu papel é observar e relatar os abusos de direitos humanos e, nesse caso, eles aconteceram ali a 5 ou 7 metros de distância.

Agência Brasil: Ninguém notou que você estava fotografando?
Leme: Não. Acho que eles estavam tão concentrados no episódio com a menina que  não perceberam que eu estava ali. Ninguém falou para eu me retirar. Depois que a menina foi baleada e caiu no chão, eu ainda fiquei ali mais uns 22 minutos.  Depois que ela caiu, chegaram alguns colonos israelenses, chegou a polícia e eles ficaram em volta da menina tirando foto. Eu também fiquei tirando foto até que um policial disse que estavam evacuando a área. Falei: 'tudo bem. Estou saindo'. E fui embora.

Agência Brasil: E não pensaram em pegar seu equipamento?
Leme: Não, não pensaram.

Agência Brasil: Mas você teve medo de perder as fotos?
Leme: Tive medo, mas logo depois do incidente, eu subi a rua, entrei na casa de alguns palestinos, tirei o memory card da câmera e entreguei a máquina para um amigo. Ele foi embora com a câmera e eu descarreguei as fotos no computador, para o caso de algum soldado querer pegar o memory card. Uma hora depois, quatro soldados me perguntaram sobre as fotos. Eu falei: 'foto? Eu não tirei foto. É proibido tirar foto ali. Você não me deixou tirar foto, lembra?'. Ele respondeu: 'ah! É mesmo'. E eu fui embora com o memory card.

Agência Brasil: No mesmo dia as fotos já estavam na internet?
Leme:  Dez minutos depois, essa fotos foram para a mídia internacional.

Agência Brasil: Você ainda estava na Palestina?
Leme: Estava, mas as fotos não foram divulgadas como minhas. Se fosse divulgado com o meu nome, enquanto estava lá, provavelmente eu seria barrado no aeroporto na hora da saída. Esperei sair de lá para poder falar mais sobre o que acontenceu, dar o meu testemunho.

Agência Brasil: As fotos foram tiradas há um mês. Por que só agora você resolveu falar?
Leme: As recomendações foram para não falar nada por conta da minha segurança pessoal e da segurança da organização em que trabalho. A ideia era esperar a poeira abaixar.

Agência Brasil: Recomendações de quem? Da Embaixada Brasileira?
Leme: Também. Mas, principalmente, do programa...

Agência Brasil: Dessa organização que você trabalha e não quer dizer o nome...
Leme: Apesar de ser uma instituição neutra, que está lá para observar e relatar as violações e os abusos de direitos humanos, quem está lá sabe que a maior parte das violações acontece por conta da ocupação e colonização israelense no território palestino. Não existe uma guerra. O que existe é uma colonização ilegal. A partir do momento em que as organizações internacionais estão lá relatando e documentando isso, Israel pode não gostar.

Agência Brasil: Como assim, não existe uma guerra?
Leme:  Você não consegue fazer uma guerra quando só tem um lado armado.

Agência Brasil: Que lado?
Leme: O lado israelense é um exército poderosíssimo contra um povo palestino que é miserável. O máximo de armamento que eles têm é um juntamento de pessoas, o Hamas e o Fatah, que eles chamam de grupos terroristas, que tentam resistir a uma ocupação ilegal. Esse conflito é divulgado pela mídia e entendido pelo senso comum como se fosse uma guerra religiosa entre judeus e mulçumanos quando, na verdade, o que acontece é uma colonização.

Agência Brasil: Você fala muito em ocupação, colonização...
Leme: Desde 1967, Israel ocupa e coloniza ilegalmente a Palestina. Essa é raiz da violência. O palestino ataca porque quer revidar o fato de Israel construir um muro em volta das cidades palestinas, quer controlar a entrada e a saída de pessoas, quer revidar por conta das demolições de casas de palestinos. Foram construídos, desde 1967 até hoje, vários assentamentos ilegais israelenses dentro do território palestino. Isso é ilegal. Isso é condenado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Isso vai contra todas as leis humanitárias internacionais.

Agência Brasil: Você fala dos crimes de Israel, mas e a história do terrorismo, dos homens-bomba? Não existe uma violência palestina que poderia ser contida?
Leme: Sim. Existe a possibilidade de conter a violência tanto do lado palestino quanto do lado israelense e o caminho para isso é colocar um fim na raiz dessa violência, que é a ocupação. Um povo que está sendo oprimido diariamente, obviamente vai revidar. Alguns vão escolher a não violência. Outros vão escolher a violência. É ação e reação, mas o equilíbrio de forças é uma piada. Crime, como o que eu testemunhei, é só mais um. Eles continuam acontecendo.

Agência Brasil: No último fim de semana [17 e 18 de outubro], três pessoas morreram da mesma forma que a estudante que você fotografou, mas parece que dessa vez um rapaz estava com uma faca...
Leme: Um rapaz em Hebron?

Agência Brasil: Perto de onde você estava quando tirou as fotos. Ele tinha uma faca, não?
Leme: Não. Um vídeo, gravado por testemunhas palestinas, mostra um soldado chegando com uma faca e jogando ao lado do corpo do palestino.

Agência Brasil: Alterando a cena do crime?
Leme: É. Aconteceu algo parecido também no caso da estudante [Hadil al-Hashlomon]. Depois de três ou quatro dias do episódio, um jornal israelense publicou a foto de uma faca no chão, perto do lugar onde ela morreu, com a versão do Exército dizendo que era dela.

Agência Brasil: Por que?
Leme:  Provavelmente para justificar o que eles fazem.

Agência Brasil: Não adiantou nada você mostrar essas fotos?
Leme: Não, não adiantou.

Agência Brasil: E mesmo assim, você tem vontade de continuar? Tem vontade de voltar?
Leme: Tenho vontade de voltar e trabalhar por essa causa que busca a paz para a Palestina e para Israel.



Fotógrafo brasileiro flagra morte de jovem palestina

Edição: Lílian Beraldo

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