“Atiraram para matar”, diz secretário de Direitos Humanos da OEA
A Nicarágua vive um impasse e começa a sofrer sanções internacionais, após 79 dias de protestos contra o governo, que resultaram em centenas de mortos – muitos deles, jovens. As manifestações, que começaram contra a reforma da previdência, se espalharam por todo o país, depois que os participantes foram violentamente reprimidos. E persistiram – mesmo com a revogação da reforma.
Hoje, os estudantes continuam entrincheirados em duas universidades e os opositores ao regime do presidente Daniel Ortega mantêm barricadas em algumas cidades, segundo o secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o brasileiro Paulo Abrão, que visita o país pela segunda vez desde o início da onda de violência, em 18 de abril.
Ele viajou a Manágua para instalar um grupo de quatro especialistas em investigações de violações aos Direitos Humanos – algo que o governo aceitou, apesar de ter rejeitado o primeiro relatório da entidade, condenando a excessiva repressão. “A CIDH destapou uma repressão que vinha acontecendo há muitos anos”, disse em entrevista à Agencia Brasil.
Agência Brasil: O governo nicaraguense aceitou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos investigasse as mortes durante os protestos, mas rejeitou o primeiro relatório, apresentando ao Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA), sob alegação de que era parcial. Como vocês conseguiram voltar ao país?
Paulo Abrão: Houve uma certa situação de ambiguidade por parte do governo. O chanceler (nicaraguense) declarou que não reconhecia o informe, alegando que não levou em conta as denúncias de setores que defendem o governo – o que não é verdade. Tem um setor inteiro do documento que faz referência a isso. Mas apesar de rejeitá-lo, manteve o convite para que a Comissão voltasse com esse grupo de expertos e continuasse com o mecanismo de seguir, em tempo real, das denúncias de violações aos Direitos Humanos.
Agência Brasil: Por que o governo nicaraguense mudou a sua postura?
Paulo Abrão: Eu diria que houve dois momentos. Numa primeira fase, o governo reconheceu que tinha um problema e precisava de ajuda. Os protestos contra a reforma da previdência transformaram-se num movimento nacional, depois que os manifestantes foram reprimidos. E continuaram, apesar do governo ter revogado a medida. Agora os governistas estão adotando uma estratégia defensiva, de negação dos fatos, porque estão sendo pressionados pelos setores internos, que lhes dão apoio. A CIDH destapou uma repressão que vinha ocorrendo há muitos anos. Havia um ambiente de intimidação – por isso a população aguentava calada. Mas a excessiva repressão nos protestos de abril mudou isso.
Agência Brasil: O presidente Daniel Ortega, que liderou a revolução sandinista de 1978, foi eleito para um terceiro mandato consecutivo em 2016. Os resultados foram questionados pela oposição, mas ele parecia ter o apoio do empresariado. Por que muitos empresários agora estão do lado da oposição?
Paulo Abrão - Fazendo um paralelo com a situação brasileira, na Nicarágua você tinha um governo que durante muito tempo vendeu ao mundo um modelo de conciliação entre capital e trabalho exemplar, que tinha um certo controle sobre os setores sindicais e era eficiente economicamente. Durante muito tempo, esse equilíbrio se manteve e os empresários estavam ganhando bem. Agora a situação é outra, de instabilidade e violência. A Aliança Cívica – que reúne estudantes, religiosos, agricultores e setores sociais que querem negociar uma saída pacifica para a crise – também conta com empresários.
Agência Brasil: A Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos disse que de 18 de abril até 2 de Julho morreram 309 pessoas nos protestos, sendo que 253 delas foram baleadas. E que apenas 12 das vítimas fatais eram policiais. Essa é a mesma informação que a CIDH tem?
Paulo Abrão: Nossos números são diferentes. Temos 255 mortes confirmadas. Mas as informações sobre mortes na primeira fase da repressão, nos primeiros 45 dias de protestos, coincidem: muitas das vítimas fatais tinham lesões na cabeça, nos olhos, no pescoço, nas costas – o que demonstrou a possibilidade de execução extrajudicial. Ou seja, atiraram para matar. Testemunhas nos contaram que havia franco-atiradores atirando contra a multidão. Essas denúncias, o padrão das lesões e os testes de balística demonstrando que foram utilizadas armas de alto calibre, revelam um padrão na repressão.
Agência Brasil: Qual é a explicação do governo para essas conclusões?
Paulo Abrão: O governo diz que existe um conflito na sociedade, a oposição e a situação e que ambos estão lançando mão de práticas de violência armada. Mas que o governo em si não é responsável pela violência. Essa explicação para nós é totalmente inconsistente. A avaliação das imagens que recebemos mostra o uso de armas que pertencem às forças de segurança. Na verdade, houve dois momentos na repressão. O primeiro, foi o Estado reagindo para tentar intimidar e diminuir os protestos – algo que não conseguiu. Nesse momento, a pressão social levou o governo a aceitar que organismos internacionais, como o CIDH, investigassem a violência. Nessa segunda fase de repressão, identificar os responsáveis tornou-se mais difícil. Já não aparecem policiais uniformizados. Muitos estão atuando à paisana.
Agência Brasil: Morreram mais pessoas nos protestos da Nicarágua, do que nos protestos da Venezuela em 2017. Mas a comunidade internacional tem sido mais branda com o governo nicaraguense do que com o venezuelano. Por que?
Paulo Abrão: A condenação internacional é construída de forma muito gradual. Tem um tempo político de maturação. A situação da Venezuela já está consolidada. A da Nicarágua e muito mais recente.
Agência Brasil: O Diálogo Nacional, mediado pela Igreja, foi suspenso porque a oposição quer antecipar as eleições presidenciais e o presidente Ortega quer terminar o mandato. Como e que a Nicarágua vai sair do impasse?
Paulo Abrão: Surgiram movimentos sociais muito fortes, como o das Mães das vítimas da violência. Enquanto isso, a CIDH instalou essa semana o grupo de quatro especialistas que, nos próximos seis meses, vão acompanhar o andamento de todos os casos denunciados, junto aos procuradores ou visitando as prisões. Nessa visita, fomos a uma cadeia e conseguimos liberar três presos. Também estamos providenciando proteção para pessoas que podem estar em risco de vida. E mantemos um grupo para acompanhar em tempo real novas denúncias de violações.