Fala de ciência...

19/07/2002 - 10h40

Em busca do quadrante de Pasteur

Hebert França

Foto: Divulgação

Qual cientista foi mais importante para o avanço da humanidade: Thomas Edison, Louis Pasteur ou Niels Bohr? Uma questão difícil como essa é o que tenta responder Donald Stokes com o livro "O quadrante de Pasteur". Nele, o autor utiliza dois eixos cartesianos para classificar as atividades de pesquisa. O eixo vertical associaria o projeto de pesquisa à sua relevância como gerador de conhecimento fundamental, aquele que leva a ciência a obter muito mais conhecimentos depois dele. O eixo horizontal é a sua relevância em termos de aplicações, econômicas ou sociais, imediatas. Partindo das proposições de Stokes, o bioquímico paulista Jorge Almeida Guimarães, de 64 anos, fez uma análise da ciência no país para a editoria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, da Agência Brasil, na reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizada à semana passada em Goiânia. Membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs), Guimarães também é secretário da SBPC, presidente da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq) e diretor do Centro de Biotecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Com passagem por várias universidades, inclusive do exterior, e instituições como professor e consultor, Jorge Almeida Guimarães desenvolve pesquisas com peptídeos biologicamente ativos, proteínas tóxicas e enzimologia e já publicou mais de 120 trabalhos científicos em revistas internacionais especializadas.

C&T – O que Stokes propõe confrontando relevância científica, tecnológica e aplicabilidade dos conhecimentos?

Guimarães - Stokes propõe, na verdade, que o desenvolvimento científico não é uma coisa linear. Quando ele coloca Bohr no quadrante da relevância científica, está dizendo que as profundas teorias desse cientista na área da física e da química não tinham, obrigatoriamente, compromisso em desenvolver nada, nenhum produto, nenhum processo. Eram, simplesmente, interpretações dos fenômenos da natureza, e Bohr não conseguiu ultrapassar as fronteiras desse quadrante. No outro eixo, da relevância tecnológica, relevância da aplicação dos conhecimentos, quem está lá é Thomas Edison, com suas descobertas na área da eletricidade que acabaram gerando uma boa parte do que temos hoje no segmento. Edison tem um pouco de relevância científica, mas suas pesquisas se destacam pela utilização da ciência com perspectivas estratégicas. Ele é um inventor e usa os princípios da química e da física para inventar coisas. Não que essas coisas tenham aplicabilidade, mas ele está fornecendo um conjunto de informações e de detalhamentos, que podem ser aplicados no desenvolvimento de algum produto. Em outro quadrante está Pasteur, com as mesmas qualificações de Bohr e de Edison, mas que aplicou ao extremo os conhecimentos acumulados. Seus estudos na microbiologia, no conhecimento dos microorganismos, possibilitaram o desenvolvimento de vacinas, contribuíram, também, para o entendimento da fermentação na produção do vinho e da cerveja e aprofundaram os conhecimentos da química orgânica. Ele tinha um pouco do Bohr, do Edison e muito de aplicabilidade do conhecimento já fazendo a vacina e melhorando a produção do vinho.

C&T – Como a ciência brasileira se encaixa nesse quadro?

Guimarães - Nós podemos aplicar o quadrante de Pasteur sobre a lógica da ciência brasileira. No quadrante deixado em branco por Stokes, podemos colocar, por exemplo, o ambiente de C&T que o Brasil criou ao longo desses 50 anos, com o CNPq, a Capes e as fundações estaduais de pesquisa. Seria a ação do estado gerando os mecanismos que poderiam possibilitar tanto relevância científica como tecnológica. Temos também indivíduos que atuam e atuaram no quadrante de Bohr, não são muitos, alguns na matemática, outros na física. Pesquisadores extremamente preocupados com as leis da natureza, com os estudos da essência básica da ciência. Mas, o que temos bastante é a pesquisa no quadrante de Thomas Edison, muito da pesquisa brasileira está situada ali.

C&T – Há alguma explicação para essa predominância do quadrante de Edison?

Guimarães – Esse é tipicamente o quadrante da pesquisa estratégica. Como há áreas em que é estratégico que o país invista, como nas pesquisas com doenças tropicais, elas acabam prevalecendo. Por sinal, o Brasil detém o maior conjunto de conhecimentos no mundo sobre doenças tropicais, principalmente as parasitárias. A ciência nacional, nesse segmento, é rica em contribuições. Há 40 anos nossa participação em ciência no mundo era inferior a 0,00 qualquer coisa; hoje, é 1,3 na média geral. Mas nesse setor representamos 15 % da produção mundial. Nós acumulamos conhecimentos e estamos a espera de alguma indústria ou instituição que queira investir para transformar informação científica em coisa prática.

C&T – O que impede nossas pesquisas de se inserirem no quadrante de Pasteur?

Guimarães –. As razões são porque começamos muito tardiamente, a indústria não investe e a comunidade científica acha mais importante publicar que fazer patente. A pesquisa científica no Brasil começou muito tarde. A mais velha das universidades brasileiras, a USP, tem 66 anos. Embora tivéssemos ciência já no século XIX, com institutos como o Butantã, em São Paulo, o Museu Emílio Goeldi, no Pará, e a Fiocruz, no Rio de Janeiro, não dispúnhamos de massa crítica suficiente. A formação de pessoal começou a ser feita no país, só nos últimos 40 anos. Estamos longe de ter a massa necessária para produzir avanços científicos e tecnológicos na mesma proporção que os países desenvolvidos.

C&T – Segundo Stokes, o componente industrial é essencial no quadrante de Bohr. Qual é a participação das indústrias brasileiras na transformação do conhecimento científico em produtos?

Guimarães – No Brasil, as empresas são novas no sistema. A patente só foi reconhecida no país muito recentemente e essa cultura ainda não foi incorporada às empresas. No mundo, o setor empresarial contribui com mais de 90% das patentes, a participação das universidades nunca passa dos 6%. No Brasil, segundo dados do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi), as contribuições de patentes no segmento acadêmico e universitário já estão chegando na proporção do que é nos outros países, mas falta a parte industrial.

C&T – As indústrias nacionais estão preparadas e motivadas para essa mudança de paradigmas?

Guimarães - No segmento farmacêutico, onde predominam as indústrias familiares, a atitude passiva de copiar os medicamentos produzidos por outras empresas terá que ser mudada, elas terão que desenvolver projetos. Como a maioria dessas indústrias não pode investir US$ 200 milhões para produzir novos medicamentos, terão que se associar a universidades, que estão preparadas para isso. Esse quadrante ocupado pelo Pasteur, no Brasil, começa a ser despertado para sua importância e, nele, a necessidade de atuação do estado é enorme. Não apenas para estimular a indústria a entender que é necessário fazer isso, como, também, para estimular por meio de mecanismos apropriados a interação do segmento com a universidade.

C&T – O atraso com que a aplicabilidade dos conhecimentos é implantada no país já promoveu perdas significativas?

Guimarães – Sim, temos vários exemplos disso. Um deles é o caso do captopril, medicamento (contra a hipertensão obtido a partir do veneno da jararaca) cuja pesquisa básica foi toda feita no Brasil, por Sérgio Ferreira, em Ribeirão Preto. Ele foi aluno de Maurício Rocha e Silva que, dez anos antes, havia descoberto a pradicinina, peptídeo que inibe uma enzima com ação na hipertensão. Essa descoberta não tinha nenhuma conotação para aplicação como medicamento, mas contribuiu para o conhecimento em fisiologia humana e animal. O interesse dele era em torno da liberação de histamina quando da picada de jararaca. Rocha e Silva foi o Bohr e Sergio Ferreira o Thomas Edison, nesse processo que, por aqui, não teve o Pasteur. Como em 1963 não havia patente no Brasil, a indústria toma conhecimento do trabalho de Sergio Ferreira, publicado em artigos de revistas científicas, e transforma todas essas informações em medicamento. Quem funcionou como Pasteur foi uma empresa internacional que se apropriou das pesquisas de Rocha e Silva e Sérgio Ferreira para produção do captopril. Um produto que movimenta US$ 5 bilhões de dólares/ano e é usado por milhões de hipertensos no mundo inteiro.

C&T – O que o país pode ter de compensação com o vencimento da patente do captopril e a produção de genéricos desse medicamento?

Guimarães – Quando a patente do captopril venceu, apareceram várias indústrias interessadas em produzir seu genérico. Fui procurado por um laboratório e me ocorreu perguntar de onde viria a matéria prima para a produção do medicamento e, para surpresa, me disseram que seria importada. Essa é uma demonstração clara da falta de visão do estado. Recuperamos ética e moralmente a patente do captopril, já que a pesquisa foi feita toda no país, mas a matéria prima, que seria o Pasteur nesse sistema, continuamos importando. Já que vamos fazer aqui, façamos também a matéria prima.

C&T – O país detém a tecnologia para produzir a matéria-prima do genérico do captopril?

Guimarães – Somos ricos em grupos de química, de síntese, com qualidade internacional e que poderiam participar na produção da matéria-prima para o genérico. O peptídeo da jararaca tem o princípio ativo, mas não pode ser administrado no organismo por via oral porque as enzimas do estômago a destróem. Injetável, ela encarece e inviabiliza o processo. A indústria, usando a lógica do Pasteur, converteu esse peptídeo em uma molécula, modificada quimicamente, para resistir as enzimas do sistema gastro-intestinal. Estamos tentando convencer o Ministério da Saúde a criar uma agência na área cientifica e tecnológica, nos moldes das que existem nos Estados Unidos e na Europa e que promovem a integração entre as empresas e os químicos.

C&T – É possível fazer novos Pasteur no Brasil?

Guimarães – Para se fazer um Pasteur hoje é preciso pendor, o que nem todo cientista tem, e visão industrial para transformar conhecimento científico em produto. Mas isso está se tornando cada vez mais natural e necessário, na formação dos cientistas. Alguns programas de pós-graduação já incentivam o empreendorismo entre seus alunos. Ao desenvolver uma tese, o indivíduo já pensa em possíveis investidores que permitirão a conversão dos conhecimentos em produtos.

C&T – E as pesquisas no laboratório de biotecnologia da UFRGS, sob sua direção, em que quadrante elas se encaixam?

Guimarães – Tentamos nos colocar no quadrante de Pasteur. Participamos do projeto genoma do eucalipto, desenvolvido em parceria entre vários laboratórios; temos grupos trabalhando na vacina contra a tuberculose; fazemos monitoramento ambiental com técnicas modernas de biologia molecular para verificar não apenas poluição, mas, também, substâncias capazes de induzir mutagenicidade e outras formas de risco celulares que possam levar ao câncer; há, ainda pesquisas com doenças em animais, em especial com o carrapato, vetor do microorganismo que causa a febre aftosa.

C&T – O senhor participa diretamente em algum projeto?

Guimarães - Pessoalmente, trabalho com venenos. Estudamos uma lagarta que provoca um acidente hemorrágico gravíssimo no Rio Grande do Sul e que predomina nas regiões de plantações de frutas tropicais. No estágio de pupa, essa lagarta é toda coberta com micro-seringas carregadas de um veneno potentíssimo que produz um quadro hemorrágico grave, imediatamente à picada, com complicações renais e cerebrais, podendo levar até a morte. Essa lagarta, que na forma adulta é uma mariposa, sempre existiu, mas habitava as florestas. Na medida que houve o desflorestamento, ela invadiu as culturas de frutos tropicais de clima temperado, como ameixa e pêssego, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Mas ela ocorre na Amazônia, também, mas como ainda está na floresta não causa tantos acidentes. Já existe o antiveneno para essa lagarta e um dos objetivos da pesquisa é melhorar as características do princípio ativo. Além disso, esse veneno tem importância porque de vários venenos de outros animais tem saído uma porção de produtos como os antitrombóticos.

C&T – Quais são as perspectivas para o futuro, conseguiremos migrar de Edison para Pasteur?

Guimarães – Nós vamos passar por essa fase, há vários trabalhos mostrando que os países desenvolvidos e os em desenvolvimento, especialmente os tigres asiáticos, que estão vencendo essa etapa em torno das patentes, o conseguiram fazendo pesquisas estratégicas. O único que não segue 100% dessa regra são os Estados Unidos, mas mesmo assim, mais de 70% das patentes são baseadas em pesquisas feitas no país. É preciso ter um componente forte de pesquisa, especialmente estratégica, e essa é uma vantagem enorme para o Brasil. Estamos em décimo-sétimo lugar na produção científica mundial, com esse 1,3%, e, decididamente esse é o substrato básico para, não havendo interrupção no processo e formando novos recursos, ampliar nossa base. O Brasil deveria estar entre os dez que mais produzem ciência no mundo e atingir isso não é difícil. Os seis que nos separam dos dez são fáceis de ultrapassar e na proporção que cresce nossa ciência, cinco vezes mais do que cresce no mundo, isso é uma questão de pouco tempo.