Trabalho escravo 2: carvoeiro ''preferia'' ser escravo a passar fome

16/11/2004 - 11h29

Andréia Araújo
Repórter da Agência Brasil

Barreiras (BA) – "Na falta de coisa melhor, virei escravo. É melhor trabalhar assim que passar fome na rua". A declaração é do jovem Ivanildo Gonçalves de Jesus, de 23 anos, que foi encontrado em uma fazenda na Bahia quando trabalhava em regime de escravidão. Ivanildo, como a maioria dos trabalhadores libertados, acredita que a falta de emprego e de qualificação profissional fazem com que exista esse tipo de trabalho.

Com as mãos queimadas pelo carvão, ele conta que todo o material de segurança que possui (bota e luvas) foi comprado por ele mesmo. A comida, a estadia e o transporte eram descontados do salário. "Já faz quatro anos que eu vivo desse jeito, dormindo em barraco de lona. O pessoal procura a gente na praça dizendo que o alojamento é bom, a comida é boa, tudo é maravilha. Então, caímos na conversa e já saímos endividados da cidade. Eu não sou daqui, sou de Salvador, não tenho parente aqui. Nos quatro anos em que estou aqui, nunca consegui juntar dinheiro para ir a Salvador. É sempre muito pouco o que pagam", relata.

Ivanildo conta que ele e seus três irmãos tiveram que trabalhar nas fazendas da região desde cedo. "Tivemos que largar o colégio e começar a trabalhar lá em Alagoinhas (BA). Lá começamos a trabalhar na roça. Daí em diante, minha vida só fez estragar. Se tivesse continuado na escola, a vida seria melhor", desabafa.

O jovem diz que a escravidão no Brasil começa pela falta de escola, passa por problemas de família e termina com a falta de assistência do Estado. Depois de libertado da "humilhação" - como ele mesmo define - de ser escravizado, Ivanildo volta à sua terra natal em busca de nova oportunidade.

Agência Brasil: Como você chegou a trabalhar nessas condições?

Ivanildo: Minha mãe faleceu quando eu ainda era bem pequeno. Foi aí que eu e meus irmão fomos morar num colégio interno, desses para meninos órfãos, durante nove anos. Somos quatro irmãos. Lá tive a oportunidade de estudar até o primeiro ano. Era bom. No Natal iam visitar a gente, levavam presentes, aquelas coisas que as crianças gostam. Mas meu pai, naquela época, bebia demais e não deu conta de olhar a gente, então tivemos que trabalhar. Saí de lá com 14 anos. Foi aí que começou a dificuldade. Tivemos que largar o colégio e começar a trabalhar lá em Alagoinhas (BA). Trabalhamos na roça. Daí em diante minha vida só fez estragar. Se tivéssemos continuado no estudo, teríamos uma vida melhor.

ABr: Você trabalha na roça há muito tempo?

Ivanildo: Sim. Mas desse jeito - como escravo - tem quatro anos, dormindo em barraco de lona. O pessoal (o aliciador ou contratante) procura a gente dizendo que o trabalho é bom, o alojamento é bom. É tudo maravilha. A gente acredita e já sai endividado da cidade. Eles pagam nossa pousada e o transporte. Eu não sou daqui, sou de Salvador. Não tenho parentes aqui. Nos quatro anos em que cheguei nessa terra não consegui nem juntar dinheiro para comprar uma passagem de ônibus para Salvador. É sempre muito pouco o que eles pagam.

ABr: Como você foi parar nessa fazenda da qual foi libertado?

Ivanildo: Nessa fazenda, eu e meu irmão chegamos já à noite. Não tinha colchão. Eu chamei, chamei e ninguém saiu. Ficamos uns 15 minutos batendo do lado de fora do barracão. Quando resolveram abrir, os outros trabalhadores arrumaram um pedaço de lona e dormimos no chão. No outro dia bem cedo, peguei um dinheiro emprestado e fui a São Desidério comprar dois colchões, um para mim e outro para o meu irmão. Eu tive que comprar também luvas e bota para trabalhar com carvão. Minhas mãos estão todas queimadas. Toda "pepinada" de pau.

ABr: Como é o alojamento em que vocês ficavam?

Ivanildo: Era horrível. Todo mundo amontoado num barraco sem janela. Muitas vezes aparecia escorpião. Nesses dias, meu irmão viu dois lá. Daquele preto. Quando alguém é picado, tratávamos com fumo. Isso era o remédio. A comida também era horrível. Passei fome lá.

ABr: Você já recebeu algum salário?

Ivanildo: Eu comecei a trabalhar no dia 1º de setembro e até agora só recebi R$ 200. Eles me descontaram um monte de coisa da cantina. Eu fui no sindicato reclamar disso, mas não resolveu nada. A gente sabe que isso é errado, mas ainda é melhor ficar assim que ficar na rua passando dificuldade. Fazendo dívida. Ruim por ruim, lá pelo menos tem comida.

ABr: O que você vai fazer a partir de agora?

Ivanildo: Eu pretendo voltar para Salvador, minha cidade. Eu quero uma vida mais digna, não quero mais ser enrolado.

ABr: Você se sentiu escravo lá?

Ivanildo: Sim, eu me senti escravo. Escravo para mim é a pessoa que não tem tratamento. Vive naquelas condições miseráveis. A mesma água que bebe, toma banho. Fossa aberta, sem privada. É muita sujeira. Escravidão para mim é isso aí.