Mudar o cenário de desigualdade racial é desafio para o Brasil, afirma ministra Matilde Ribeiro

20/11/2007 - 19h55

Marcela Rebelo
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Mudar o cenário de desigualdade social e racial brasileiro é um desafio grande e que requer tempo. Apesar dos avanços realizados nos últimos anos, com relação à questão racial, o Brasil “pode e deve fazer muito mais”. A avaliação é da ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Matilde Ribeiro, que lembrou que o Brasil tem 507 anos de existência e que a escravidão só deixou de existir há 120 anos.  “Essa abolição não veio acompanhada de um projeto que fosse inclusivo para as pessoas que deixaram de ser escravas”, disse a ministra. “Então mudar esse cenário [de desigualdade racial] é muito importante, necessário, mas não é muito fácil.”A ministra afirmou que o desafio está em gerar  oportunidades para os que não tiveram inclusão ao longo da história. Segundo ela, o período de duas gestões – oito anos de governo – “é curto na história, mas é também um período que nós podemos demarcar mudanças significativas no país”. No Dia da Consciência Negra, celebrado hoje (20), a Voz do Brasil, a Agência Brasil e a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal (Cojira DF) entrevistaram a ministra Matilde Ribeiro. A perguntas foram feitas por integrantes de movimentos da sociedade civil. Confira abaixo, os principais trechos dessa entrevista.Radiobrás: Qual a importância de se ter uma data para marcar a consciência negra no país?Ministra Matilde Ribeiro: Omovimento negro brasileiro, há praticamente quatro décadas, temtrabalhado, tem persistido, que esse Dia Nacional da Consciência Negraseja assimilado por todas as instituições públicas e privadas doBrasil. E isso tem acontecido ao longo desses anos todos. Hoje asescolas acabam trabalhando com os alunos a importância dessa data, asinstituições de cultura, os movimentos sociais, os governos e, emalguns lugares, é feriado nesta data em função de todaessa mobilização.  Isso é extremamente importante considerando que oBrasil é composto por praticamente 50% da sua população deafrodescendentes e, ao longo da nossa história, não houve o devidoreconhecimento da contribuição dessa grande parcela da população para ariqueza do país. Então é muito importante que toda esta movimentação emtorno desta data continue e que, cada vez mais, tenhamos uma vidainstitucional em torno da figura de Zumbi dos Palmares como um heróinacional e tendo o movimento negro como protagonista de toda essamovimentação. Radiobrás: O que o governo tem feito para reduzir as desigualdades entre brancos e negros?Ministra Matilde Ribeiro: A partir da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Seppir, nós temos trabalhado para que em todas as áreas da política pública brasileira nós tenhamos programas, projetos e ações que venham a reduzir as desigualdades. Na área educacional, por exemplo, o ProUni [Programa Universidade para Todos] tem provocado ao longo de três anos a condição de permanência dos jovens nas universidades particulares do país com bolsas parciais ou integrais. Isto é um grande avanço na área educacional, assim como toda a revisão do ensino considerando a Lei 10.639 que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira desde o ensino fundamental. Mudar a mentalidade dos professores, mudar a dinâmica da sala de aula considerando a presença dos vários grupos raciais e que a vivência entre os alunos seja cada vez menos permeada por preconceito, por discriminação, é uma forma de fomentar a mudança de comportamento e também a inclusão social. Então esses são exemplos, poderia dar exemplos na área do trabalho com o Plano de Trabalho Doméstico Cidadão, o Programa Nacional de Saúde Para a População Negra, tudo isso incide em melhoria da qualidade de vida para os negros e para a população em geral. Professor Nelson Inocêncio (coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB): Hoje nós temos uma situação, do ponto de vista simbólico, muito diferenciada do passado. Você hoje tem no primeiro escalão a própria ministra Matilde Ribeiro, você tem o ministro Gilberto Gil, ministro Orlando Silva, ministra Marina Silva e ainda no Supremo Tribunal Federal, o ministro Joaquim Barbosa. Isso é inédito na história do Brasil e é óbvio que a população negra percebe isso de modo muito positivo. Agora, o que seria necessário para a gente fazer a conexão entre o avanço simbólico e o avanço material? Os indicadores sociais ainda mostram que a população negra tem muito o que crescer. Como podemos fazer a conexão entre os avanços simbólicos e os avanços materiais propriamente ditos?Ministra Matilde Ribeiro: O governo brasileiro, como você próprio disse, já deu um salto importante, trazendo para dentro do primeiro escalão pessoas com competência, técnica e política, que são negras, e em outros momentos da vida do país não tiveram oportunidade. E essa mesma oportunidade, eu concordo com você, tem que ser gerada para a população como um todo. Nesse sentido, nós podemos destacar ações do governo em âmbito nacional, como a política para as comunidades de quilombos. Temos hoje mais de 3,5 mil quilombos identificados no país que passam a fazer parte do desenvolvimento das políticas públicas, como o Bolsa Família, como o programa Saúde da Família, como o programa Luz para Todos. Tudo isso tem uma interferência muito grande na construção da vida material, na qualidade de vida. Assim como também, no meio urbano, o governo tem trabalhado com o Pró-Jovem, que faz a vinculação entre a educação e o trabalho, gerando oportunidade para os jovens pobres, entre eles negros. Na área da saúde, tem o Programa Nacional de Anemia Falciforme, uma doença que precisa ser detectada desde os primeiros anos de vida. Eu tenho certeza que todas essas atividades combinadas contribuem para a mudança da qualidade de vida material, simbólica e também contribuem para a inclusão dos cidadãos e cidadãs, que não tiveram oportunidade ao longo da história. Assim como eu também tenho certeza que nós precisamos fazer muito mais, considerando que são cinco anos de atuação deste governo e que precisamos ter maiores resultados, ainda dentro desta segunda gestão, e no futuro.Ouça aqui o que disse a ministra:

Jurema Werneck (coordenadora da ONG Criola): Qual é a perspectiva que a Seppir vai defender com relação à saúde da mulher negra nas ações de saúde do Brasil inteiro. O que a Seppir entende como saúde da mulher negra e que ações pensa em desenvolver com o Ministério da Saúde, ou sem ele, em relação a esse tema? Ministra Matilde Ribeiro:  O Ministério da Saúde, tendo em vista inclusive a ação do movimento social, e junto com a Seppir, tem desenvolvido desde 2003 a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Esse é um grande avanço dentro da construção das políticas públicas de saúde e atende a população como um todo. Além disso, nós temos uma preocupação sim voltada às mulheres negras, considerando que vivem situações específicas no que diz respeito a sua vivência cotidiana, estão mais propensas a ter miomas, estão mais propensas a ter doenças derivadas da sua questão social, assim como também a vivência da maternidade acaba, muitas vezes, trazendo alguns prejuízos por falta de um atendimento adequado. Então, toda essa situação tem feito parte do atendimento humanizado e de uma visão de inclusão na saúde. Um aspecto importante a destacar é a construção do pacto pela redução da mortalidade materna. Isto é uma medida muito importante porque envolve uma atenção específica, considerando que, ainda no Brasil, muitas mulheres morrem em função de gravidez, parto, aborto, somando também a sua condição social. Então esses programas têm acontecido de maneira simultânea e nós sabemos que a sociedade civil tem um papel muito grande no monitoramento, na fiscalização e no desenvolvimento dessa ações. Oliveira Silveira (membro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial): Que ritmo a senhora pretende imprimir à Seppir neste segundo mandato uma vez que, no primeiro, já se verificou que a secretaria é viável, é importante e correspondeu às expectativas do segmento negro? Que possibilidades há de o governo como um todo apostar mais na secretaria?

Ministra Matilde Ribeiro: Nesse segundo mandato, nós temos um desafio muito grande que é, além de dar continuidade às ações que já vem sendo desenvolvidas ao longo dos quatro últimos anos, reafirmar cada vez mais a importância dos ministérios, dos órgãos de governo trazerem para si a tarefa de desenvolverem as políticas de igualdade racial, destacando orçamento para essas políticas e dando maior efetividade ao Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que foi resultado da primeira Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, realizada em 2005. E também pretendemos, no ano de 2008, desenvolver a segunda Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Então ao mesmo tempo que nós temos por missão, por meio do trabalho cotidiano da secretaria, dar andamento às ações de maneira mais sistemática, buscando maiores resultados, nós temos também o compromisso de ir revendo a política, considerando ser uma área nova no governo federal e que merece ser mais e mais organizada, mais e mais efetivada. Com a igualdade racial, nós pretendemos contribuir para que todo brasileiro, toda brasileira, possa viver a sua cidadania plena, independente da sua condição racial ou étnica. É um desafio muito grande, mas em dois mandatos nós acreditamos poder avançar nesse campo, contribuindo para a geração de oportunidades para os que não tiveram inclusão ao longo da história.

Sionei Leão (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal): A Seppir é resultado de uma mentalidade vitoriosa, de uma militância do movimento social negro, sobretudo a partir dos anos 70, do século passado, como marco eu cito o Movimento Negro Unificado (MNU). Eu pergunto para senhora o que a secretaria está colaborando ou está pensando para que nós tenhamos nos próximos 10, 20 anos, políticas públicas efetivas no campo da saúde, educação, geração de emprego e renda. O que a Seppir colabora para um cenário futuro?

Ministra Matilde Ribeiro: É papel do governo, é papel do Estado, promover o bem de todos. Agora, quando nós falamos da igualdade racial, nós estamos falando de 507 anos de existência do Brasil, 120 anos apenas que a escravidão deixou de existir. E essa abolição não veio acompanhada de um projeto que fosse inclusivo para as pessoas que deixaram de ser escravas através da sua luta, não foi por dádiva de ninguém. Então, mudar esse cenário é muito importante, necessário, mas não é muito fácil. Hoje, por exemplo, as universidades estão praticando os programas de ações afirmativas e a política de cotas, a reserva de vagas, e com isso propiciando uma maior inserção dos jovens negros nas universidades. Há cerca de 40 universidades no Brasil com esses programas. Daqui a dez anos, nós teremos um grande número de negros que tiveram a possibilidade de ter a formação universitária, e já temos que começar a nos preocupar, desde já, com a sua inserção no mercado de trabalho, seu desenvolvimento profissional. Então não basta apenas entrar nas universidades. Nós temos também que nos preocupar com o que vai acontecer no campo do trabalho, na vida política, daqui a cinco ou dez anos. Nós também temos que olhar para o futuro e nos preocupar com a mudança da dinâmica da relação entre educação, trabalho, participação política, inclusão social, porque, de fato, estamos impulsionando mudanças para o futuro. 

Ministro da Cultura Gilberto Gil:  Ministra Matilde, como está se sentindo à frente desta pasta, à frente desta instituição, tão prezada pelo presidente, criada por ele, para se tornar mais um corpo auxiliar nessa construção da grande questão da cultura negra no Brasil, que é uma questão fundamental para país?

Ministra Matilde Ribeiro: Nós, como ministros, temos um aprendizado muito grande, acumulando ao que a gente já fazia antes. Eu, antes de ser ministra, já vinha atuando junto aos movimentos sociais e na área social, eu sou assistente social de formação, e me sinto hoje bastante envolvida com esse trabalho provocado pela criação da Seppir, me sinto muito responsabilizada pela condição vivida pelos pobres, pelos negros, pelos homens, pelas mulheres no país e, muitas vezes, a demanda é muito maior do que a gente pode atender. Então, no percurso, no desenvolvimento da atividade, nós acabamos muitas vezes ficando apreensivos, ficando bastante mobilizados por esse pensamento que temos que fazer, que temos que ir a frente e, muitas vezes, a dinâmica da máquina pública não favorece esse desenvolvimento. O presidente Lula tem sido um apoiador muito contundente na construção da política de igualdade racial. O diálogo com as demais estruturas de governo tem avançado ao longo desses anos. Mas eu tenho a sensação de que nós podemos e devemos fazer muito mais. Esse é o sentimento que me mobiliza, sabendo que duas gestões, somando oito anos, é um período curto na história, mas é também um período que nós podemos demarcar mudanças significativas no país e eu me sinto muito feliz por isso.