Há resistência corporativa contra fim de manicômios, diz ex-coordenador de saúde mental

22/05/2011 - 13h14

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil

Brasília – A semana que terminou marcou a passagem da mobilização anual pela luta antimanicomial, processo que ganhou respaldo legal e das políticas públicas com a instituição da Lei nº 10.216, há dez anos, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica.

A política de saúde mental no país ainda é alvo de críticas pela incompleta implantação e centralização das estratégias de atendimento nos centros de Atenção Psicossocial (Caps), como mostrou a Agência Brasil em reportagem especial publicada no ano passado.

Para o médico Domingos Sávio Alves, que coordenou a área de saúde mental do Ministério da Saúde na década de 90, as críticas têm viés corporativo em função da perda de espaço dos psiquiatras com a chamada “desospitalização”, por meio do fechamento de leitos de longa permanência. Atualmente, ele faz parte da equipe do Instituto Franco Basaglia, uma instituição civil sem fins lucrativos que atua na área da saúde mental e da reforma psiquiátrica no Brasil. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Agência Brasil - Alguns setores como a Associação Brasileira de Psiquiatria [ABP] afirmam que a Lei 10.216 ainda não foi integralmente implantada. Passados dez anos desde a sua assinatura, por que há essa crítica?
Domingos Sávio – Isso é compreensível. Nós tivemos 200 anos de uma cultura na qual a assistência psiquiátrica se resolvia com internação. Isso chegou a um ponto tão forte que, quando eu cheguei ao Ministério da Saúde, no começo da década de 90, os leitos psiquiátricos do SUS [Sistema Único de Saúde] representavam 19,5% de todos os leitos disponíveis para internação. Era mais leito do que na pediatria e mais do que o número de leitos de clinica cirúrgica. Era uma aberração. Tratar pacientes graves em regime aberto é uma história praticamente recente no Brasil. Então, nesse sentido, a lei de 2001 não foi integralmente cumprida e nem tem como. Você não pode fazer uma desospitalização que não seja programada. Tirar pessoas há muito tempo internadas ou mesmo de curta internação [e substituir esse atendimento] por um processo de viver em comunidade é muito complexo. Vai demorar mesmo.

ABr – Mas além disso, há avaliação de que o atendimento está ficando restrito aos Caps, por muito tempo, e é pouco multidisciplinar...
Domingo Sávio - É estranha essa crítica de que faltam equipes multiprofissionais. É o contrário. A implantação dos serviços comunitários é que quebrou a hegemonia do psiquiatra nas equipes, entendeu? Esse é um dado fundamental.

ABr – Há razão para essa mudança de avaliação?
Domingos Sávio – Os críticos alegam que houve esvaziamento do papel do psiquiatra. Mas é claro, se você está tirando a pessoa do hospício para levar para o tratamento comunitário... Na medida em que você está tratando da pessoa em espaços abertos, que ela tem que voltar para casa e para a convivência familiar, pegar ônibus, essa pessoa não pode estar impregnada [de medicamentos]. Esse poder de medicalização é uma tendência comum dos médicos, não é nem do psiquiatra, é de todos os médicos, eu sou médico, sou neurologista. Então isso foi esvaziado, porque tem que achar outras formas de cuidar com o mínimo de medicação. Isso tem que colocar como mérito da reforma e não como um demérito.

ABr – Mas não houve uma certa desassistência às pessoas com problemas de saúde mental?
Domingos Sávio - Nós tínhamos 32 mil leitos psiquiátricos. O tempo médio de permanência de um paciente em um hospital psiquiátrico era 30 dias, portanto, você atende em um mês 32 mil pessoas. Hoje há 1.650 Caps, com uma média, por unidade, de 200 pessoas. Ou seja, você faz 320 mil atendimentos. Não houve desassistência, pelo contrário. Aumentou-se a capacidade de assistência de uma maneira muito mais ética e contemporânea. O hospital psiquiátrico, do ponto de vista técnico, está superado. Ele foi criado há 200 anos num ato heroico do [médico francês Philipe] Pinel de tirar as pessoas dos porões para levar para o campo da medicina e o isolamento era o instrumento de tratamento baseado no princípio que é o mesmo aplicado às bactérias. É preciso isolar para conhecer e entender. Com os avanços da psicofarmacologia, da psicanálise, e outros tipos de possibilidade de intervenção, além da conquista dos direitos humanos, não é possível trabalhar com aquela perspectiva.

ABr – Com a desospitalização mudaram atribuições e divisão de tarefas no tratamento?
Domingos Sávio – Houve uma compreensível perda de hegemonia nas equipes. Qual é a regra do hospital? O médico que manda na enfermeira, no técnico de enfermagem e que aplica o medicamento no paciente. O hospital, sobretudo o psiquiátrico, tende a ser uma coisa hierárquica. No Caps não tem isso. É uma equipe multiprofissional, os técnicos de referência podem ser o médico ou não. É uma maneira de cuidar em que você compartilha saberes. Até porque a doença mental não é nem chamada de doença porque não se sabe o que é. A classificação pela Organização Mundial da Saúde é de transtorno mental, exatamente porque não se classifica como uma doença.

ABr – Mas, será que a sociedade e o Estado absorveram essa nova cultura de desospitalização? Muitos juízes, a pedido dos parentes, mandam internar as pessoas...
Domingos Sávio - O processo da reforma psiquiátrica como um todo implica três linhas. Primeiro, implica a mudança da assistência. Segundo, esse novo modelo precisa ser incorporado pelos profissionais e pelas famílias, para que haja a alteração da cultura. E, terceiro, precisa da consolidação em lei, que já temos. O processo de legitimação cultural é demorado. A maioria das internações a mando de juízes não ocorria a pedido de famílias, mas a pedido de vizinhos. Mas os juízes, na verdade, determinam o tratamento e não a internação. Então, existem outras formas de tratamento, como no Caps, no ambulatório, em hospitais gerais. Na medida em que se esclarece para um juiz as outras possibilidades de tratamento, em geral, eles aceitam. O que existe de maneira forte ainda? As interdições, aí sim por parte da família. É uma questão que está ligada à questão de heranças.

ABr – Algumas leis, como ainda ocorre com o Estatuto da Criança e do Adolescente ou a Lei Maria da Penha, parecem passar por um processo de maturação. Será o caso da Lei nº 10.216?
Domingos Sávio - Mas melhorou muito sabia? A gente tem [no Instituto Franco Basaglia] um programa voltado aos direitos do paciente psiquiátrico. A partir da implantação da lei, as demandas das pessoas foram mudando. Antigamente, procuravam a gente por maus-tratos em hospitais psiquiátricos. Depois da lei, a demanda foi mudando por conta do direito propriamente dito. Agora, o processo é lento porque o Judiciário é muito mais lento do que a incorporação de uma ação social.

ABr – Da instituição da lei para cá, ocorreu o fenômeno do crack. Há uma nova categoria de dependentes químicos de uma droga que é extremamente nociva. Isso pode criar uma sobrecarga para os Caps. Há condições para atender a essa demanda?
Domingos Sávio - Qual é a novidade do crack? É o problema de ser da rua. Porque o uso de cocaína não é disseminado, não tem comparação com o álcool. No Brasil, se há problema epidemiológico, é com o álcool, que é [consumido por] quase 10%. A cocaína não chega a 0,4% da população adulta, mas é consumida por um determinado tipo de pessoa, em casa. O que eu acho que incomoda no crack, entre aspas, é o fato de ser na rua, é visível demais. Ou seja, é uma mazela muito visível que incomoda bastante. Outro aspecto é que, como é um fenômeno novo, a gente tem que ter estratégias novas para lidar. Isso é mais ou menos o que foi colocado no plano de enfrentamento do crack, com os Caps, as casas de apoio transitório. Uma estratégia também importante e criativa são os consultórios de rua, com equipes volantes que vão cuidar das pessoas onde elas estão.

ABr – O governo vai anunciar o Plano Brasil sem Miséria, previsto para junho. Para acabar com a extrema pobreza tem que necessariamente atender essa população, não?
Domingos Sávio - Sem dúvida. Porque essa população é a miséria acrescida de outra miséria. É a miséria humana propriamente dita, porque não é a miséria só financeira. É a miséria da impossibilidade de criar e fortalecer laços sociais. Essas pessoas têm uma baixíssima autoestima e uma perspectiva de vida zero, porque aquilo, seguramente, vai levá-las a sequelas graves, até a morte. Essas pessoas devem ser focalizadas. Não tenho dúvida de que, se não forem contempladas, será um equívoco. Estratégias como a acolhida nas casas de apoio transitório suprem um lado, o lado de você poder tirar da rua e falar 'não, você só fica na rua se quiser. Você pode ficar aqui'.

Edição: Juliana Andrade e Talita Cavalcante