Em demonstração de fé, kalungas fazem Hasteamento do Mastro do Divino Espírito Santo

23/07/2013 - 13h28

Pedro Moreira
Enviado Especial da EBC

São Jorge (GO) - A Lua quase cheia já brilhava no céu do pequeno povoado de São Jorge, a 35 quilômetros da cidade de Alto Paraíso de Goiás, quando começaram os primeiros batuques na caixa – tambor tradicional dos kalungas. O maior grupo de quilombolas do país, que vive espalhado em dezenas de comunidades goianas, começava a apresentar um dos seus mais importantes rituais religiosos.

Subindo uma das ruazinhas de terra, o grupo de cerca de 50 kalungas parou diante da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge. Na parte de dentro, eles se espremeram diante do pequeno altar montado em homenagem ao santo da Capadócia. Diante das imagens de santos católicos e oxirás da Umbanda, foram entoados os cantos e rezas tradicionais desses descendentes de escravos. Lá fora, rojões e fogos de artifício chamavam o povo para o início dos festejos.

De volta à rua, os kalungas receberam a companhia dos curiosos e dos turistas que lotam a região nesta época de férias. Para participar do cortejo, todos puderam pegar uma das candeias (tipo de vela feita com um pavio grosso e escuro). A chama queima forte, alimentada pela cera de arati (espécie de abelha), e até hoje ilumina muitas casas nas comunidades isoladas. No meio da rua de terra, o mastro de madeira foi fincado em um buraco no chão. Ao som dos batuques e da cantoria, o mastro é erguido e, na ponta dele, sobe um estandarte representando o Divino Espírito Santo.

O céu se ilumina com fogos vermelhos, acompanhados de gritos de comemoração. A música fica mais intensa, com o som de pandeiros, violas e sanfonas. As mulheres com saias rodadas, de tecido fino, começaram a dançar a Sussa no pé do mastro. Os pés descalços eram ágeis nas pisadas e giros de corpo. As mãos, hora seguravam as pontas das saias, hora se agitavam ao redor da cintura.

A intensidade da dança típica dos kalungas ficava evidente no suor que brotava nos rostos alegres, de sorriso largo, mesmo com o friozinho da Chapada começando a cair. A Sussa tem origens africanas. Para os antepassados, era um agradecimento pela fartura na lavoura. Preservada pelo isolamento dos kalungas, hoje celebra a alegria desse povo.

Todo o simbolismo da cerimônia de Hasteamento do Mastro do Divino Espírito Santo e o vigor da Sussa são algumas das manifestações que podem ser conferidas até o próximo sábado no 13º Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. Organizado pela Casa de Cultura Cavaleiro de São Jorge, o festival vem ajudando a manter vivas as tradições dos primeiros povos a habitar a região, hoje conhecida pelas belezas naturais.

Natalina dos Santos Rosa, mais conhecida como Dona Dainda, é uma respeitada liderança do povo Kalunga de Vão das Almas, no município vizinho de Cavalcante. Ela se orgulha em comandar a cerimônia de Hasteamento do Mastro. "Ah, eu acho ótimo. Acho muito bom, porque antigamente não sabíamos se isso era um valor. Às vezes, eu falo para os meninos, que há algum tempo, nós dançávamos para nós mesmos. Hoje, outras pessoas já se interessam de ver nossa dança, cultura nossa. Para mim, é uma honra, mostrar a tradição que meus pais tinham", conta ela.

A programação do Encontro de Culturas inclui, ainda, apresentações de teatro, música e dança, contação de histórias, oficinas e exibição de filmes. A mostra de cinema Centroécine leva a sétima arte para o meio da rua. Uma tela montada num caminhão exibe mais de 20 curta e longas-metragens. As produções são do Centro-Oeste do país, mas este ano, um espaço da programação é dedicado ao cinema de Pernambuco.

Nas cadeiras de plástico enfileiradas sobre o chão poeirento, estão famílias inteiras de turistas e, também, os moradores locais. A aposentada Benedita Alvelino do Nascimento diz que nunca foi a um cinema de verdade. A primeira vez que assistiu a um filme na telona foi na edição do ano passado da mostra. E gostou da experiência. "Eu nunca fui não, porque a gente mora aqui, não sai daqui, então eu achei muito boa essa ideia. Eu acho que é um divertimento. Porque aqui a gente não tem divertimento nenhum."

O Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros vai até domingo (28), na Vila de São Jorge, distrito da cidade de Alto Paraíso de Goiás. Durante toda a semana, o palco principal montado na vila recebe artistas regionais. Hoje (23), a principal atração é o cantor pernambucano Lenine. As atividades e manifestações culturais se dividem por alguns pontos do povoado. Na sexta-feira (26), começa a programação com os povos indígenas. A Aldeia Multiétnica, área criada especialmente para a edição de 2007 do festival, deve receber cerca de 200 indígenas de várias etnias, de todo país.

Edição: Talita Cavalcante

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