Brasil perde o complexo de vira-latas quando ganha o mundo no pós-guerra

Publicado em 31/03/2014 - 08:05 Por Paulo Virgilio - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro

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Definida pelos historiadores como a “era do nacional desenvolvimentismo”, a democracia que vigorou no Brasil a partir de 1946, até ser interrompida pelo golpe de 1964, foi marcada por uma visão otimista e esperançosa do país. Havia, por parte de intelectuais e artistas, uma preocupação permanente de construir algo novo, mas profundamente enraizado nos valores culturais brasileiros. Foi uma época de autoconfiança, em que o Brasil se projetou no mundo, com sucessos nas artes, nos esportes e na arquitetura. Um país novo parecia se erguer dos escombros da ditadura do Estado Novo (1937-1945).

Até então, os brasileiros viviam o chamado “complexo de vira-latas”, como definiu o dramaturgo e jornalista Nélson Rodrigues em uma famosa crônica publicada em 1958. “Por 'complexo de vira-latas' entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”, escreveu o escritor. Ele não imaginava que, naquele ano, o país ganharia a Copa do Mundo da Suécia e iniciaria uma epopeia para se tornar o país do futebol.

Construção do Palácio da Alvorada, Oscar Niemeyer

A construção de Brasília e a arquitetura de Niemeyer projetam no mundo a imagem de um país criativo e sofisticadoArquivo Nacional

Em várias áreas, o complexo foi sendo superado. O ano de 1958 é emblemático dentro do curto período de democracia (1946-1964) antes do golpe militar. O país vivia a euforia do otimismo desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek, com a construção de Brasília, de dezenas de rodovias e o início da indústria automobilística. “Ainda não houve ano melhor em nossas vidas”, garante o jornalista e escritor Joaquim Ferreira dos Santos, em seu livro Feliz 1958: O Ano Que Não Devia Terminar, publicado em 1997.

A autoestima do brasileiro nunca esteve tão em alta como naquele ano, e não só pelos feitos de Pelé e Garrincha nos gramados suecos. Ainda no esporte, a tenista Maria Esther Bueno venceu o Torneio de Wimbledon, na Inglaterra, o mais tradicional do mundo.

O Brasil já havia entrado em moda no mundo desde alguns anos antes. Carmen Miranda, com seu figurino exótico, criou um imaginário de país que se difundiu internacionalmente. Ela chegou a ser a artista mais bem paga dos Estados Unidos no pós-guerra. Outro modelo de país foi projetado no exterior com o sucesso do filme O Cangaceiro, dirigido pelo cineasta Lima Barreto, vencedor de melhor filme de aventura no Festival de Cannes e exibido em mais de 80 países. Na música, Aquarela do Brasil foi sucesso mundial. Rebatizada de Brazil, foi gravada em 1957 por Frank Sinatra e foi a primeira música brasileira a ter mais de 1 milhão de execuções nas rádios norte-americanas.

Ao mesmo tempo, a arquitetura de Oscar Niemeyer ganhava destaque mundial, e à medida que avançavam as obras dos palácios de Brasília, se construía também outra imagem do Brasil, a de um país urbano e sofisticado.

O cinema, entretanto, continuou discutindo os problemas do país. O Pagador de Promessas ganhou, em 1962, a Palma de Ouro do Festival de Cannes e foi indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro. A peça com o mesmo nome, escrita por Dias Gomes, também foi um grande sucesso e foi montada em vários países.

 

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A renovação estética brasileira de maior impacto ocorreu na música, mas começou a se difundir no mundo quando o filme Orfeu do Carnaval ou Orfeu Negro, produção ítalo-franco-brasileira, com músicas de Tom Jobim e outros compositores brasileiros, baseada na peça Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960 e a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1959. Era a bossa nova que começava a conquistar o mundo.

O marco da estética da bossa nova foi o lançamento de um álbum da cantora Elizeth Cardoso inteiramente gravado em 1958 com composições da dupla Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, que dois anos antes havia assinado as canções da peça e do filme.

Começava o movimento da música popular brasileira que alcançou o maior reconhecimento internacional, sobretudo após o show no Carnegie Hall, em Nova York (1962) e o lançamento internacional de Garota de Ipanema, de Tom e Vinicius, em 1963. Frank Sinatra, o cantor mais importante da época, gravou a música em 1967.

No Brasil, a expansão dos meios de comunicação, fortalecidos pelo crescimento da publicidade em um país que se tornava a cada dia mais urbano e industrial, teve um imenso papel na difusão da cultura. O período 1946-1964 foi, sem dúvida, o que mais teve títulos de jornais diários publicados nas grandes cidades do país, atuando sem censura e expressando as mais diversas vertentes de opinião.

Foi o período de consolidação da vasta cadeia de jornais do então grande magnata da imprensa, Assis Chateaubriand, que trouxe para o Brasil, em 1950, a televisão e foi o responsável pela fundação do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o maior museu da América Latina e um dos mais importantes do mundo. Naqueles anos, as duas principais revistas semanais, Manchete e O Cruzeiro, chegaram a atingir a marca de 700 mil exemplares.

Masp, o Museu de Arte de São Paulo

Fundado em 1947, inicialmente em sede provisória, o Masp acumulou nos anos seguintes a mais importante coleção de arte europeia do Hemisfério SulArquivo Agência Brasil

Nas páginas dos jornais e revistas, a intelectualidade participava ativamente dos debates sobre os rumos do país, enquanto a literatura brasileira vivia uma ótima fase durante os anos da democracia de 1946, com a consolidação de muitas carreiras iniciadas nos anos 1930. “Durante esse período, uma série de nomes publicou seus mais importantes livros - Jorge Amado, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, e poetas de grande peso, como Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes. Eu publiquei meu primeiro livro [A Luta Corporal] em 1954”, lembra o poeta Ferreira Gullar.

Acreditando na instalação de uma indústria cultural inteiramente brasileira, no final dos anos 1940, industriais e banqueiros paulistas financiaram duas iniciativas, no cinema e no teatro, que tinham a proposta de criar no Brasil produções com a mesma qualidade técnica da Europa e dos Estados Unidos. Fundado em 1948, por Franco Zampari, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) manteve, além da sala de espetáculos, uma companhia estável que durou até 1964. O TBC tinha o melhor elenco do país, com nomes como Cacilda Becker, Tônia Carrero, Paulo Autran, Sérgio Cardoso, Walmor Chagas e Nydia Licia, entre outros.

O mesmo Zampari criou, também no final dos anos 1940, a Vera Cruz, produtora cinematográfica nos moldes de Hollywood, com grandes estúdios, muitos equipamentos, diretores europeus e elenco fixo. Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro com sólida carreira na Europa, voltou ao Brasil para trabalhar na Vera Cruz. O maior sucesso da companhia foi O Cangaceiro, um destaque mundial. O estúdio, no entanto, não conseguiu resolver o gargalo da distribuição de seus filmes e acabou indo à falência em 1954.

No Rio, foi criada, nos anos 1940, a Atlântida Cinematográfica, que não teve o grande investimento em infraestrutura da Vera Cruz, mas alcançou estrondoso sucesso popular com suas comédias musicais carnavalescas, as chanchadas. “A chanchada nos falava muito mais do Brasil e da alma brasileira do que as produções ambiciosas, caras e artesanalmente superiores da Vera Cruz”, explica o jornalista e escritor Sérgio Augusto, autor do livro Este Mundo É um Pandeiro: A Chanchada de Getulio a JK.

Para Sérgio Augusto, era evidente a sintonia entre o que havia de mais popular na cultura brasileira e o contexto político-social da época. “Nos programas humorísticos da Rádio Nacional, nos espetáculos de teatro de revista e, evidentemente, na chanchada. Desde problemas do cotidiano, como falta d’água, transporte urbano deficiente, carestia, corrupção, nepotismo, burocratismo, a questões mais, digamos, amplas, como o subdesenvolvimento, o autoritarismo e a geopolítica, foram motivo de gozação nas comédias cariocas dos anos 40 e 50”, lembra.

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Edição: Davi Oliveira e Lílian Beraldo

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