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Direitos Humanos

Incra delimita área quilombola na Bahia, alvo de disputa com Marinha

Helena Martins - Repórter da Agência Brasil
Publicado em 26/08/2014 - 20:04
Brasília

Depois de décadas de resistência negra e pelo menos cinco anos de disputa judicial, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) publicou, no Diário Oficial da União, ontem (25), o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) da comunidade quilombola Rio dos Macacos, em terras dos municípios de Simões Filho e Salvador, na Bahia. Segundo resolução do Incra, serão destinados para fins de delimitação e regularização fundiária duas áreas descontínuas, que totalizam 104 hectares (ha).

Ao todo, o território reconhecido como quilombola tem 301,9 ha, por isso a comunidade discorda das dimensões apontadas. Trabalhadora rural e pescadora, Rosemeire dos Santos Silva afirma que “a gente já perdeu muito”. Ela aponta que a área original tinha mais de 900 hectares, e parte do território foi ocupado pela Marinha. Segundo o Incra, a partir de 1970 a Marinha adquiriu terras com a desapropriação das fazendas Aratu e Meireles e com a doação da fazenda Macacos, pela prefeitura de Salvador, e deu início à construção de uma Base Naval no local. A partir de então, os conflitos pela posse da terra começaram.

Rosemeire dos Santos Silva, representante do Quilombo Rio dos Macacos

Rosemeire dos Santos Silva, representante do Quilombo Rio dos MacacosArquivo/Wilson Dias/Agência Brasil

Os quilombolas reivindicam pelo menos 270 ha, dimensão apresentada neste ano para o governo federal. “A comunidade fez uma contraproposta de 270 ha, e esperamos uma resposta do governo, que nunca chegou”, segundo Rosemeire. Para ela, a área proposta não responde às demandas da comunidade, uma vez que, por exemplo, não garante acesso à água. “A gente só faz plantar e pescar, é o que a gente sabe. Eu não sou de uma área urbana, eu sou de uma área rural. Tem que respeitar”, diz ela. Segundo a quilombola, a comunidade está reunida para definir o que fará, diante da delimitação, agora oficial.

Hoje, vivem no local 67 famílias descentes de escravos, que permaneceram lá após a desativação de fazendas produtoras de cana-de-açúcar, há mais de 100 anos. De acordo com o RTID e relatórios complementares, vestígios dessa ocupação - como correntes e construções, bem como a cultura local, expressa, por exemplo, na existência de vários terreiros de candomblé - confirmam a descendência, reconhecida pelo Estado em 2011.

Nos últimos anos, contudo, os conflitos entre quilombolas e Forças Armadas se intensificaram. Em 2009, a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu a desocupação do local para atender às necessidades futuras da Marinha, e em 2012, a Defensoria Pública da União na Bahia (DPU-BA) pediu suspensão do processo.

No mesmo ano, os quilombolas, em parceria com organizações de defesa dos direitos humanos, produziram relatório com violações provocadas pela Marinha. O texto foi encaminhado às Organizações das Nações Unidas (ONU). Nele, os descendentes de escravos afirmam que 50 famílias foram expulsas do território para a construção da Vila Naval; práticas religiosas de matriz africana foram proibidas; e a mobilidade da comunidade foi prejudicada, pois a via de acesso mais próxima passava pela guarita da vila militar. Casos de violência e falta de saneamento básico e de acesso à saúde, água e energia elétrica, também foram denunciadas. A Marinha sempre negou as acusações.

A secretaria-geral da Presidência da República atuou, nos últimos anos, para resolução do conflito.  O processo foi complexo. Na última reunião com os envolvidos, em maio, o governo sugeriu a redução do território de cerca de 300 ha para 86 ha, recusada pelos representantes da comunidade. Houve a alteração da proposta para 104 ha, também rejeitada. No mês seguinte, a 1ª Vara Federal de Salvador determinou, em resposta à ação civil pública ajuizada pela DPU-BA e pelo Ministério Público Federal (MPF), que a divulgação do RTID, finalizado em 2012, deveria ocorrer em 30 dias.

Hoje (26), o secretário de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, Paulo Maldos, avalia como "grande vitória da comunidade" a delimitação da área. “A situação que a gente encontrou, três anos atrás, era de litígio e iminente expulsão das comunidades por uma ação de reintegração de posse na Justiça”, relembra. “A gente passa para uma situação de reconhecimento definitivo pelo Estado brasileiro de que aquela é uma comunidade especifica, com uma cultura especifica”, comemora.

De acordo com ele, a definição dos 104 hectares foi a possível. Atualmente, explicou, a Base Naval de Aratu, existente no local, tem importância estratégica para o país, sendo responsável pela proteção do Nordeste, do Atlântico Sul e de áreas de exploração do pré-sal. “Houve todo um esforço de compatibilização dos direitos históricos das comunidades para permanecer e ter tanto o seu passado quanto poder construir seu futuro, sem nenhum tipo de retirada, e com acesso às políticas públicas”, afirma o secretário. Segundo Maldos, a Marinha participou da definição da área, e está de acordo com as dimensões.

De acordo com a Intrusão Normativa 49/2008 do Incra, que estabelece procedimentos para identificação e demarcação de terras ocupadas por remanescentes quilombolas, os interessados – tanto a comunidade quanto a Marinha, no caso – terão até 90 dias para contestar o relatório. O julgamento dos posicionamentos pode durar até 180 dias. Depois, caso não haja alterações a serem feitas, haverá a regularização fundiária, com desintrusão de ocupantes não quilombolas e a demarcação do território. Por fim, o Incra deverá realizar a titulação do território, outorgando título de propriedade à comunidade, em nome da associação dos moradores.

A Agência Brasil procurou a Marinha, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.