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Internacional

Justiça ainda ignora decisões de direitos humanos, diz novo presidente da CIDH

O juiz brasileiro Roberto Caldas, novo presidente da Corte
Alex Rodrigues - Repórter da Agência Brasil
Publicado em 15/02/2016 - 06:59
Brasília
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© CIDH/Arquivo
O juiz brasileiro Roberto Caldas

O juiz brasileiro Roberto Caldas assume a presidência da Corte Interamericana de Direitos HumanosCIDH/Arquivo

Com 30 anos de experiência profissional, o sergipano Roberto Caldas, 53 anos, preside a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) desde o começo do ano. Oficialmente, porém, sua posse ocorre nesta segunda-feira (15), em San Jose, na Costa Rica, onde funciona a sede da mais alta corte do sistema americano de promoção dos direitos humanos, cuja principal atribuição é zelar pela correta aplicação e interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos por todos os países que ratificaram o tratado, de 1969.

Tendo advogado em casos ligados aos direitos trabalhistas e sociais – inclusive perante o Supremo Tribunal Federal (STF) –, Roberto Caldas atuou como juiz auxiliar nos três processos envolvendo o Brasil que a CIDH julgou entre 2007 e 2010. Entre eles está o que atribuía ao Estado brasileiro a responsabilidade por não ter apurado devidamente o desaparecimento, a tortura e morte de guerrilheiros no Araguaia, na década de 1970. Na ocasião, Caldas declarou que os fatos apurados configuravam crimes de lesa-humanidade, cujo julgamento a Lei da Anistia não podia impedir.

Indicado pelo governo brasileiro em 2013, com o apoio de entidades de classe e organizações sociais, ele foi eleito juiz titular daquela Corte, tornando-se o segundo brasileiro a ocupar o posto desde a criação do órgão, em 1979. Após ocupar a vice-presidência do tribunal, foi eleito para presidir a CIDH pelos próximos dois anos, repetindo a trajetória do primeiro brasileiro a chegar à entidade, o jurista Antônio Augusto Cançado Trindade (1995/2006).

Especialista em ética e direito constitucional e ex-membro da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, Caldas se empolga ao falar sobre a importância da CDIH para a promoção dos direitos humanos. Mesmo ao responder sobre as dificuldades orçamentárias da entidade, que recebe mais recursos de países europeus do que dos próprios Estados-membros americanos - uma ameaça no momento em que o continente europeu se vê obrigado a mobilizar esforços para responder à crise humanitária decorrente das ondas migratórias.

Caldas também espera colaborar para tornar a Corte mais acessível – hoje, só 1% das denúncias apresentadas à comissão interamericana chegam ao julgamento da Corte. Em entrevista à Agência Brasil, o ritmo tranquilo de sua fala só se alterou quando reconheceu que profissionais da Justiça do país ainda desconhecem decisões da CIDH, que são obrigados a aplicar, e diante da polêmica em torno dos Estados Unidos, que ignoram a Convenção Americana – único assunto sobre o qual se furtou a opinar.

O juiz acredita que, com maior visibilidade da CIDH, é de se esperar que mais organizações sociais recorram ao tribunal contra o Estado brasileiro, conforme entrevista a seguir:

Agência Brasil - O senhor assumiu uma das sete cadeiras da Corte Interamericana de Direitos Humanos em fevereiro de 2013, indicado pelo governo brasileiro. Após ocupar a vice-presidência, o senhor foi eleito por seus pares para presidir a entidade. Apenas um brasileiro [o jurista Antônio Augusto Cançado Trindade] havia ocupado tais cargos antes. Há, para o Brasil, alguma implicação política e prática dessa maior visibilidade na corte?

Roberto Caldas – É relevante. É a cultura jurídica brasileira que está sendo homenageada. Ainda que, a partir do ingresso na Corte, os juízes passem a ser considerados representantes interamericanos. Perante o tribunal, o vínculo nacional de cada juiz deixa de existir. Apesar de, atualmente, não podermos votar nos casos que envolvem nossos países de origem. Há, inclusive, grande controvérsia em torno dessa decisão, adotada antes de meu ingresso na Corte, porque a própria Convenção Americana estabelece que os vínculos nacionais não se mantêm após a nomeação.

Agência Brasil – Quais serão suas prioridades à frente da Corte?

Roberto Caldas – É muito importante incrementarmos o diálogo com a sociedade e com os próprios estados-membros da OEA [Organização dos Estados Americanos] – especialmente com os poderes judiciários nacionais – para fortalecer e estruturar a Corte como um tribunal de nível superior. Cada julgamento da Corte Interamericana estabelece um precedente de interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos, e a maioria dos países adota essas decisões como normas legais equivalentes às suas constituições. Por isso, o diálogo é importante para que as interpretações da Corte Interamericana sejam aplicadas cotidianamente por todas as autoridades dos Três Poderes nacionais.

Agência Brasil – Até recentemente, quase metade dos recursos financeiros da Corte vinha de doações de países europeus? Esta situação persiste?

Roberto Caldas - Continua. Entendemos que essa situação deve ser aperfeiçoada. A cooperação internacional com países europeus ou de outros continentes deveria ser apenas para aperfeiçoarmos alguns serviços e projetos, e não como acontece hoje, ser de fundamental importância para o funcionamento da Corte. Qualquer déficit orçamentário deveria ser suprido pelos próprios estados-membros. Vamos nos esforçar para que os Estados garantam recursos fixos ordinários a fim de que não fiquemos dependendo de cooperação internacional ou renovação de convênios, o que não é desejável para a independência e o funcionamento normal do tribunal.

Agência Brasil – E qual a expectativa orçamentária para 2016?

Roberto Caldas – A partir das doações dos estados, a Organização dos Estados Americanos deve nos repassar cerca de US$ 2,7 milhões. Além disso, algo em torno de US$ 3 milhões normalmente vêm da cooperação internacional. Nossa preocupação é que esse valor tende a diminuir, já que os países europeus estão redirecionando seus recursos para enfrentar os reflexos da onda migratória com que toda a Europa está lidando. Esse também é um grande desafio. É importante que os Estados americanos passem a dar o aporte necessário para que a Corte, que já opera com orçamento abaixo do necessário, não deixe de realizar serviços fundamentais. Grande parte dos nossos serviços é prestada por voluntários, o que está longe do ideal. Podemos ter que diminuir o número de sessões de julgamento, o que resultaria em atraso na apreciação de processos, entre outros problemas.

Agência Brasil – Quantas denúncias anuais, em média, a Comissão Interamericana recebe, quantas encaminha para o julgamento da Corte e quantas efetivamente são julgadas?

Roberto Caldas – A Corte tem recebido da Comissão Interamericana, em média, cerca de 20 novos casos contenciosos por ano. Eles são apresentados pela comissão de julgamos, todos eles. É preciso observar que a Corte é mais importante pela qualidade de suas sentenças do que pela quantidade, já que cada decisão estabelece um precedente a ser seguido por todos os Estados e não só pelo que é citado no processo. Eu não saberia dizer agora o número exato, mas a comissão recebe em torno de 2 mil denúncias anuais. Logo, é diminuto o número de casos que chegam à Corte.

Agência Brasil – É necessário e possível tornar esse trâmite mais amplo e célere?

Roberto Caldas – Não há demora na Corte. Sempre podemos aperfeiçoar os trâmites, mas hoje, na Corte, os casos são apreciados entre 18 e 24 meses, em média, o que é uma duração bastante razoável. Já na comissão, realmente, há uma certa demora, com alguns casos ultrapassando 20 anos para serem analisados e remetidos para julgamento da corte. A comissão já está enfrentando esse problema com vigor. Além disso, nos últimos anos, incrementamos bastante o diálogo entre os dois órgãos.

Agência Brasil – Qual a implicação das normas internacionais que o Brasil ratificou, como a Convenção Americana dos Direitos Humanos, para as leis brasileiras? Um país sofre algum tipo de sanção quando infringe esses tratados?

Roberto Caldas – Após serem ratificadas por qualquer país, as normas internacionais passam a ter o mesmo vigor, o mesmo peso das leis locais do país. A Convenção Americana, também conhecida como Pacto de San José, traz princípios fundamentais para a proteção e promoção dos direitos humanos. Por isso, normalmente, equipara-se às constituições nacionais. No Brasil, o patamar hierárquico da convenção continua em debate no STF [Supremo Tribunal Federal], que discute se ela está em grau constitucional ou infraconstitucional. De qualquer forma, ela é de vigência obrigatória, e todos os operadores de Justiça têm obrigação de aplicá-la. Sua não aplicação pode levar um país que a tenha ratificado a ser condenado na Corte Interamericana.

Agência Brasil – Os operadores da Justiça (juízes, servidores, procuradores e advogados) brasileiros estão familiarizados com os preceitos gerais dos direitos humanos, com os mecanismos internacionais de proteção e com as decisões da Corte Interamericana?

Roberto Caldas – Há um déficit imenso. Uma pesquisa de 2008 revelou que a utilização de decisões da Corte e da Convenção Americana de Direitos Humanos é mínima. Várias gerações foram formadas sem estudar direitos humanos e direitos internacionais. A minha própria geração, durante a graduação, na maioria dos casos não teve nada sobre isso na faculdade. Estávamos vindo de um período autoritário, durante o qual proibiu-se o ensino dessas e de outras matérias. Isso torna ainda mais importante a presença do Brasil na Corte Interamericana. Para chamar a atenção para o tema, multiplicar o conhecimento sobre o sistema e, assim, chegarmos ao patamar desejado. Já houve uma melhoria, mas notamos que a comunidade jurídica brasileira ainda conhece pouco o sistema americano de promoção de direitos humanos.

Agência Brasil - O simples fato de a comissão interamericana apreciar uma denúncia e, não havendo acordo, considerar que as informações apresentadas pelos denunciantes são suficientes para que a Corte julgue os fatos, é suficiente para arranhar a imagem de um país?

Roberto Caldas – Esta é uma consideração que pode ter múltiplas facetas. Alguns entendem que sim, que o país está sendo exposto, colocado no banco dos réus, sob a luz dos holofotes. Outros entendem que isso é uma sequência natural e lógica. Claro que quando se trata de um fato repetido, que já tem precedente, a comissão interamericana age de forma mais vigorosa. Aí sim, o embaraço é inegável.

Agência Brasil - Uma das primeiras denúncias que a Corte vai julgar em seu mandato envolve o Brasil. Trata-se do caso da Fazenda Brasil Verde, que envolve o suposto trabalho escravo em uma fazenda particular do Pará, entre os anos 1980 e 2000. Esse julgamento, independentemente da sentença final, também prejudica a imagem do Brasil, hoje apontado internacionalmente como referência no combate ao trabalho escravo?

Roberto Caldas – Não deveríamos distinguir as obrigações estabelecidas por Estados-membros das [obrigações] externas. A Convenção Americana de Direitos Humanos, por exemplo, deve ser obrigatoriamente aplicada pelos países que a ratificaram, caso do Brasil, e os poderes Judiciários Nacionais têm que lidar com esse dispositivo, garantindo que ele seja cumprido. O fato de uma denúncia de eventual desrespeito à convenção chegar à Corte pode resultar em um redirecionamento ou criação de determinadas políticas públicas, a obrigação de observar o que estabelece o pacto internacional. Sobre o caso específico da denúncia contra o Estado brasileiro, por minha nacionalidade, eu não participarei desse julgamento. Logo, só me resta esperar pela decisão dos meus colegas juízes.

Agência Brasil– Quantas denúncias contra o Estado brasileiro estão pendentes de julgamento na Corte? Há expectativa de que o número de casos remetidos à Corte pela comissão interamericana aumente nos próximos anos?

Roberto Caldas – É natural que quanto mais um sistema se torna conhecido, mais ele é acessado. É crível, portanto, que aumente o número de denúncias feitas à comissão interamericana e, consequentemente, de casos remetidos à Corte. Isso não quer dizer que está aumentando o grau de violações aos direitos humanos, mas sim que o sistema internacional está sendo mais acessado em busca de respostas às violações. Isso já ocorreu com outros países e acredito que aconteça também com o Brasil. Hoje, na Corte, temos apenas dois casos pendentes de julgamento. Na comissão, no entanto, há vários. Só em 2015 foram apresentadas cerca de 100 novas denúncias.

Agência Brasil - Então a expectativa é de que o número de julgamentos em geral aumente?

Roberto Caldas – Sim. E acredito que também passaremos a julgar mais casos relativos aos chamados direitos sociais, como o direito à vida, à saúde, à educação ou ao trabalho. Temas extremamente relevantes para os países da América, já que o continente é marcado por uma distribuição de renda precária e pela desigualdade social. É possível que, dada a nova composição da Corte, passemos a julgar essas questões como violações aos direitos humanos, segundo uma tendência de que o desrespeito a esses direitos também pode ser judicializado.

Agência Brasil – Em 2010, o senhor atuou como juiz nomeado no julgamento de episódios ocorridos durante a chamada Guerrilha do Araguaia. A Corte condenou o Estado brasileiro a investigar os fatos, determinar o paradeiro dos desaparecidos, julgar e punir os responsáveis. Na ocasião, o senhor afirmou que os poderes públicos dos países que aceitaram a Convenção Americana de Direitos Humanos devem respeitá-la, inclusive adequando suas leis às decisões da Corte. Para o senhor, os “crimes de desaparecimento forçado, execução sumária extrajudicial e de tortura, perpetrados sistematicamente pelo Estado brasileiro para reprimir a Guerrilha do Araguaia, são exemplos acabados de crimes de lesa-humanidade, e seu julgamento não pode ser impedido pela passagem do tempo ou por dispositivos normativos, como a Lei da Anistia”. Na condição de presidente da Corte, o que o senhor diz sobre esse episódio? O Brasil deve julgar e punir os agentes do Estado que, durante a ditadura civil-militar sequestraram, torturaram, mataram e, em muitos casos, desapareceram com os corpos de oponentes do regime e, em alguns casos, de pessoas que não tinham ligações com a luta armada?

Roberto Caldas – Em relação à guerrilha, essa foi a sentença da Corte, e é nossa opinião, lavrada sobre a jurisprudência anterior. A sentença deve ser integralmente cumprida, e esperamos que a interpretação do tribunal seja devidamente aplicada pelo Brasil. Lógico que cada país tem seu ritmo, mas já estamos vendo que a decisão começa a ser observada por algumas instâncias do Judiciário. Acreditamos que o Supremo Tribunal Federal também o fará quando chegar a hora.

Agência Brasil – Os Estados Unidos resistem a ratificar a Convenção Americana dos Direitos Humanos, mas, ainda assim, a sede da comissão interamericana fica em Washington. O senhor é favorável à transferência da entidade para outro país que reconheça a validade do tratado internacional?

Roberto Caldas - Esta é uma questão política que compete aos Estados discutirem e diz respeito à comissão. É um tema aberto à discussão, mas não me cabe, como presidente da Corte, emitir minha opinião sobre o tema.