No Ceará, acesso à água é desigual
A aposentada Maria do Socorro Cabral, 67 anos, mora há mais de meio século em frente à antiga estação ferroviária localizada no centro de Quixadá. Nos últimos quatro anos, em que o Ceará convive seguidamente com a estiagem, ela nunca deixou de ter acesso à água. A casa tem uma caixa d'água de 4,1 mil litros. “Para quem tem caixa, não falta água e praticamente todas as casas aqui perto têm caixa”, destaca.
No auge dos períodos de seca, a estação ferroviária funcionava como ponto de saída para os sertanejos que fugiam da fome e da miséria rumo a Fortaleza. Há pelo menos um ano e meio, apenas composições de carga chegam e partem do local.
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Em vez de trens, são os carros-pipa que ficam parados ao longo da estação ferroviária. Eles atuam sob a coordenação do Exército Brasileiro, levando água para as localidades de forma emergencial. A comunidade de Engano, no distrito de Riacho Verde, depende totalmente dos carros-pipa, mas eles circulam pouco por lá. Segundo Paulo Sérgio Victor de Sousa, morador do local, o caminhão só aparece quatro vezes por mês. E os 12 mil litros despejados de cada vez na cisterna da casa de farinha, de onde é feita a distribuição para os moradores, não são suficientes para as mais de cem famílias que moram no local.
Em uma tarde de terça-feira, a agricultora Ana Cleide Anselmo da Silva, 35 anos, via a louça se acumular na pia. A última vez em que a cisterna da casa havia recebido água tinha sido por iniciativa própria, quando ela gastou R$ 150 para pagar o transporte da água por um carro-pipa particular. A vasilha do Spike, o cachorro da família, também estava vazia. Ana Cleide mora longe da casa de farinha e já não tem mais o carrinho de mão com o qual trazia água para casa. Agora, depende da água da casa vizinha, que, por sua vez, também depende de carros-pipa.
O prefeito de Quixadá, João Hudson, admite que o acesso à água está mais difícil nos distritos do município, onde os açudes menores estão praticamente secos – com exceção de alguns que receberam água das últimas chuvas. No centro do município, onde mora Maria do Socorro, o abastecimento é feito pelo Açude Pedra Branca. O prefeito estima que o volume atual, caso não chova, dure ainda um ano. A administração vem implementando ações emergenciais, como a construção de cacimbas (reservatórios mais rasos do que poços), além do envio de carros-pipa. O assessor da Secretaria da Agricultura Nilson Santos estima que haja cerca de 70 caminhões circulando no município.
A 248 quilômetros dali, em Crateús, no Sertão dos Inhamuns, o assunto do momento era a adutora construída para trazer água do Açude Araras para os habitantes. O abastecimento da zona urbana chegou a entrar em colapso em fevereiro, diante do fim das águas do Açude Carnaubal e da Barragem do Batalhão, os dois reservatórios que abasteciam a cidade.
Os canos de aço que passam sobre a Ponte dos Patriarcas se estende por 156 quilômetros até o município de Varjota, onde fica o Açude Araras. “É a segunda maior adutora da América Latina”, ressalta o prefeito de Crateús, Mauro Soares, debaixo de seu inseparável chapéu de couro. A água começou a correr dentro das tubulações no dia 2 de março, mas somente uma das quatro estações de bombeamento estava funcionando dois dias depois da inauguração – havia pouca pressão para levar a água para as casas.
A operação de mitigação dos efeitos da seca é realizada, segundo o prefeito, desde 2012. Além da adutora, que começou a ser montada em agosto de 2014, houve a perfuração emergencial de 24 novos poços públicos em fevereiro deste ano. “O que me dá a sensação de dever cumprido é ver a população nos passando uma mensagem de reconhecimento das ações do município e do governo do estado. Hoje, a gente ouve no rádio muitas pessoas ligando e agradecendo pelo trabalho que a gestão vem fazendo”, conta o secretário de Recursos Hídricos de Crateús, Carlos Alves Beserra.
“Já chegou água em Cajás? E na Cidade Nova? Os moradores da Maratoã já ligaram para cá avisando que não há água nas torneiras”, exclamava o locutor da rádio Poty, atendendo a ligações de moradores que relatavam falta de água nos bairros, mesmo com a adutora funcionando há dois dias.
Devido à baixa pressão da água, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) estabeleceu um rodízio para atendimento dos bairros. Às segundas, quintas e sextas, a água seria liberada para os bairros da parte baixa da cidade. Às terças, quartas, sábados e domingos, era a vez da parte alta, onde fica a maior parte dos bairros de Crateús.
Na cidade, o poder aquisitivo tem influência no acesso à água. Morador do bairro São Vicente, na parte baixa da cidade, o empresário Luís Altino de Melo mandou cavar um poço profundo na própria casa há cerca de um ano e meio para o consumo da família e a manutenção da piscina. Diante da crise que se instalou na cidade, ele resolveu compartilhar a água com os vizinhos: mandou instalar três torneiras no muro para que as pessoas pudessem abastecer os recipientes de casa.
Morador do Conjunto São José, mais conhecido como Morro do Urubu, na parte alta da cidade, Antônio Francismar Alves Pereira Batista, 37 anos, era um dos que se serviam das torneiras. Era uma tarde de quinta-feira quando ele chegou com um garrafão de água mineral e um balde fundo e largo. “Água não chegou, mas a conta continua chegando”, critica Batista.
A falta d´água também se transformou em negócio em Crateús. Uma empresa piauiense (Crateús está na divisa com o Piauí) havia chegado há 15 dias para instalar uma filial na cidade. Somente nesse período, de acordo com Áureo Machado, encarregado da empresa, os técnicos já tinham perfurado 17 poços em Crateús. Cavar um poço de 80 a 120 metros de profundidade custa, segundo ele, R$ 7,8 mil.
“Nós sabemos que o Ceará tem águas profundas e somos capazes de perfurar poços de até 500 metros de profundidade. Queremos participar de licitações também”, almeja Áureo, diante de um dos poços públicos onde os moradores faziam fila para pegar água.
Seca no Ceará, acesso à água é desigual