Coletivo denuncia fraudes no sistema de cotas para medicina na Bahia
O Coletivo Central Estudantil (CCE) e estudantes negros da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) denunciaram ao Ministério Público Federal (MPF) casos de fraudes no sistema de cotas, no curso de medicina da instituição. Após o levantamento de situações que se enquadram como fraude, o Coletivo de Estudantes Negras/Negros de Medicina (NegreX) publicou uma carta de apoio às investigações, na página do grupo, no Facebook.
“Compartilhamos o sentimento de indignação de todos os estudantes lesados pelos fraudadores. Reafirmamos nosso compromisso na luta pelas políticas afirmativas para as pessoas a quem são de fato destinadas”, diz um trecho da carta do NegreX.
Uma aluna do terceiro semestre de medicina da universidade, que não quis se identificar, disse que começou a investigar os casos por conta própria. Assim que levantou provas de que quatro pessoas teriam se autodeclarado de baixa renda ou negras, na turma do primeiro semestre de 2015, ela levou o caso ao coletivo de estudantes, que deu andamento às investigações.
“Descobri que uma pessoa se declarou com renda baixa, para conseguir ingressar em medicina pelas cotas. Investiguei e vi que [a pessoa] tem muito dinheiro, estudou em escola particular e é de família com alta renda. Depois disso, analisamos [ela e os integrantes do CCE] a lista dos cotistas aprovados, e vimos que mais três pessoas se declararam negras, sem ter a pele escura. Mas como a universidade não contestou isso no ato da matrícula, elas estão cursando normalmente”.
Paulo Reis é estudante de Museologia da instituição e integra o CCE e o Akofena (Núcleo de Negras e Negros Estudantes da UFRB - NNNE). Ele relata que as provas mostram que alguns dos estudantes têm carros e posses, como imóveis. Há casos de estudante cotista empregado em banco público, via concurso.
“Nós, do CCE, com apoio do Negrex, conversamos com o reitor, que negou saber da existência dos casos de fraude. A partir disso, foi criada uma comissão mista para acompanhar o cumprimento da lei de cotas. O grupo é composto por estudantes, professores e técnicos administrativos”, informou o estudante, que integra o grupo de denúncias. Após a reunião com a reitoria da universidade, os coletivos envolvidos publicaram uma nota pública relatando o encontro e os acordos estabelecidos, entre eles a formação da comissão.
Paulo Reis disse que a ideia é fazer com que a comissão da UFRB (formada também por estudantes que representam o movimento negro) torne-se referência em acompanhamento e apuração de casos de fraudes em cotas, para outras universidades.
A criação do grupo de trabalho para controle da aplicação da Lei de Cotas foi confirmada pela reitoria da UFRB, que constituiu a comissão por meio de uma portaria. Entre os membros, há estudantes ligados às investigações, professores da instituição e técnico-administrativos. Um deles é o professor da Universidade de São Paulo, Kabengele Munanga, que é pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRB.
A comissão foi criada, mas não foi implantada oficialmente, segundo Munanga. “Ainda não há regras que definem como vai funcionar, mas isso será trabalhado em reuniões, que servirão para guiar o nosso trabalho.”
A Lei de Cotas existe desde 2012 e garante a reserva de 50% das vagas em universidades e institutos federais a alunos que estudaram o ensino médio em escola pública ou no programa Educação de Jovens e Adultos. Além disso, há reservas a pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas. Para o professor Munanga, que é antropólogo e especialista em estudos de identidade negra e racismo, a lei existe como forma de reparação social.
“Isso não foi à toa, porque os negros não estavam nas universidades brasileiras depois de tantos anos de abolição [da escravatura]. Até o ano 2001, quando se começou a discutir as cotas, apenas 2% dos estudantes nas universidades brasileiras eram negros ou negras. Um dos caminhos para resolver isso foi a reserva de vagas, as cotas”.
Munanga classifica o critério que define a cor ou etnia como ambíguo. Para ele, se a pessoa se autodeclara negra, por exemplo, a banca da universidade precisa questionar isso, caso o fenótipo (características físicas) do candidato seja diferente da declaração.
“Se não há mecanismos de controle, haverá fraudes. O problema não é a lei, é o critério. A terminologia afrodescentente é vasta e qualquer um, no Brasil, pode se considerar assim. As pessoas se aproveitaram desse conceito de autodeclaração para fraudar. As leis não resolvem tudo, porque precisam ser monitoradas e acompanhadas. A fraude nas cotas não existe somente na UFRB, está em várias instituições federais e em concursos públicos”, afirmou o especialista e membro da comissão, que destaca o direito de defesa dos estudantes que são apontados nas denúncias.
Uma integrante da comissão, que não quis ter a identidade revelada, e estuda medicina por meio do sistema de cotas, ressaltou que, depois das análises em outras listas, detectou mais quatro casos suspeitos, em turma mais recente, de pessoas que se autodeclararam negras, sem ser.
“É preciso entender que as cotas não são um presente ou um favorecimento, são uma conquista das pessoas negras. Não é aceitável que utilizem uma "afroconveniência" para ingressarem em vagas que são garantidas a nós, por lei”.
Em nota, a UFRB informou “que já tomou as providências necessárias para apurar as denúncias referentes ao processo seletivo 2015.2 para acesso aos cursos do segundo ciclo, após a conclusão do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde”. Além disso, confirmou que três processos referentes às denúncias estão em fase de investigação.
Procurado pela Agência Brasil, o Ministério Público Federal, na Bahia, confirmou o recebimento das denúncias, que ainda não passaram por uma análise do órgão.
O Ministério da Educação (MEC) disse, em nota, que a prestação de informação falsa pelo estudante deve ser apurada, mas é garantido o contraditório e o direito à ampla defesa. Caso a denúncia se confirme, será feito “o cancelamento de sua matrícula pela instituição federal de ensino, sem prejuízo das sanções penais eventualmente cabíveis”. Além disso, a pasta destacou que a universidade tem autonomia para comprovar os critérios de elegibilidade e apuração, na hipótese de prestação falsa pelos estudantes.
A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) confirmou estar ciente do assunto e disse acompanhar o caso junto à universidade e ao movimento.
Os estudantes apontados pelas denúncias não foram procurados porque não tiveram a identidade revelada, já que os casos ainda estão sob investigação e devem ser confirmados, oficialmente.