Mulheres quilombolas pedem mais recursos para desapropriação de terras
Mulheres quilombolas cobram aumento de recursos federais destinados aos processos de desapropriação de terras para essas comunidades. Segundo o dossiê A Situação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras no Brasil, apresentado pelas organizações não governamentais Geledés e Criola à Organização dos Estados Americanos (OEA), os valores previstos para 2016 somam R$ 5 milhões. O montante é 80% inferior ao investimento de 2015 (R$ 25 milhões).
O documento também trata de violações contra as mulheres quilombolas. No dia 30 de setembro, mulheres negras que sofreram diversos tipos de violência relataram, durante audiência pública na capital paulista, casos dos quais foram vítimas à relatora de Direitos de Afrodescendentes e Mulheres da OEA, Margarette Macaulay, que veio ao Brasil conhecer de perto a realidade apresentada no dossiê.
A jovem Isabela da Cruz, de 26 anos, que cresceu na comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha, no município Reserva do Iguaçu, estado do Paraná (PR), tem a vida marcada pela disputa de terra. “Eu falo a partir da luta pela titulação dos territórios quilombolas, que, depois de todo esse tempo, ainda não estão regularizados. Para mim, isso é racismo institucional”, disse Isabela.
Para ela, há morosidade do Estado na regularização das terras, e a população negra está sujeita à invisibilidade por parte do Poder Público e da sociedade. “As mulheres quilombolas padecem da invisibilidade que lhe nega o direito de existir e todos os direitos fundamentais decorrentes disso. Ainda hoje precisamos explicar nas escolas e para as pessoas com as quais vamos dialogar sobre os nossos direitos, o que é uma comunidade quilombola.”
Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a previsão de orçamento para regularização de territórios quilombolas para 2017 é de R$ 4 milhões, sendo R$ 500 mil para pesquisas e R$ 3,5 milhões para desapropriações. “Dá para dizer, sim, que a gente vai ter uma baixa na nossa capacidade operacional para titulação e mediação de conflitos”, disse a representante do Incra Isabelle Picelli.
Isabelle Picelli explicou que, diante da queda no orçamento, o Incra estabelece prioridades para destinar os recursos. “Em geral, usamos esses critérios: comunidade em conflito, comunidade com alto grau de vulnerabilidade social, recomendação do Ministério Público. Vamos usar esses critérios para conseguir priorizar no ano que vem”, disse.
De acordo com o dossiê, em 2014, foram registrados 76 conflitos de terras envolvendo 6.144 famílias quilombolas. Os dados foram coletados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Do lado oposto aos quilombolas estão principalmente empresários, mineradoras, madeireiros, além de grileiros e fazendeiros.
Depoimentos
Segundo Isabela da Cruz, por causa da violência, muitos moradores de comunidades quilombolas são obrigados a deixar as terras em que vivem “Eu nasci na cidade. Por conta de toda violência que a minha comunidade sofreu, a tentativa de expulsão do nosso território, meus parentes, todo mundo fugiu, ficou com medo de ser morto pela polícia local, pelos fazendeiros locais, então era escolher: ou saía dali com vida ou sem vida. Aí, meu avô foi morar na cidade, e eu nasci na cidade e com 9 anos eu fui morar no quilombo”, contou Isabela.
A jovem destacou a forte relação entre as comunidades e os quilombos. “O que eu posso dizer é que foi no quilombo que eu aprendi a ser gente. O respeito, a forma de se relacionar, a forma de tratar o outro – e quando eu falo o outro, eu falo a árvore, eu falo a planta, a terra, o bicho, a criação, é de tudo um pouco. Se você não souber respeitar as leis naturais do quilombo, você não colhe, você não planta, você não tem água potável, você não tem nada”, disse a jovem sobre a sobrevivência na comunidade quilombola Paiol de Telha.
Como outras mais de 1,5 mil comunidades, que estão em processo de regularização pelo Incra, o Quilombo Paiol de Telha, que tem mais de 200 anos, ainda não foi demarcado.
Isabela lamenta as consequências do agronegócio nas terras da sua comunidade. “A gente se sente ameaçado pelo agronegócio até quando vamos beber água do poço e esse poço está envenenado com agrotóxico que eles passam nas plantas. Eles não tem o menor respeito pelas crianças, as crianças estão todas com a pele machucada por conta da água que bebem e em que se banham, não conseguimos fazer algumas plantas porque o veneno vem e mata tudo”, disse.
Violência sexual
Outro problema enfrentado pelas mulheres quilombolas é a violência. “Sabemos que as mulheres nas comunidades são vítimas de violência tanto sexual quanto violência física, mas também são vítimas de violência psicológica e da invisibilidade social que o racismo traz”, ressaltou Isabela.
O dossiê traz a realidade de violência sexual contra meninas quilombolas. “Meninas descendentes de escravos nascidas em comunidades kalungas da Chapada dos Veadeiros protagonizam as mesmas histórias de horror e barbárie dos antepassados, levados à força para trabalhar nas fazendas da região nos séculos 18 e 19. Sem o ensino médio e sem qualquer possibilidade de emprego além do trabalho braçal em terras improdutivas nos povoados onde nasceram, elas são entregues pelos pais a moradores do município de Cavalcante”, diz o documento.
A cidade tem 10 mil habitantes e fica no nordeste do estado de Goiás. Segundo a denúncia, a maioria dessas meninas trabalha como empregada doméstica em casas de família de classe média e, em troca, ganha apenas comida, um lugar para dormir e horário livre para frequentar as aulas na rede pública.
“Para piorar, fica exposta a todo tipo de violência. A mais grave, o estupro, é geralmente cometido pelos patrões, homens brancos e com poder econômico e político. As vítimas têm entre 10 e 14 anos. Os autores, de profissionais liberais a políticos, de 20 a 70 anos. Por enquanto, eles continuam impunes”, conclui o dossiê.
Incra
Segundo o Incra, a demora na regularização dos territórios quilombolas se dá devido ao longo processo que deve ser cumprido conforme a legislação. “Ele [processo] tem uma fase de identificação do quilombo, que envolve estudos técnicos e científicos, principalmente do ponto de vista histórico e antropológico. Tem uma fase de contestação ao trabalho científico produzido, quer dizer, os afetados [proprietários da terra] têm duas instâncias para contestar, isso segue aquela orientação de ter o duplo grau de jurisdição”, explicou Isabelle Picelli.
Segundo ela, há ainda uma fase em que é necessária a ação da Presidência da República para desapropriar as terras e, então, os imóveis são avaliados para que o Incra ajuíze ações. “Se em um quilombo tiver 30 imóveis, temos que fazer 30 ações de desapropriação com ações judiciais, portanto é o tempo do Judiciário para dar resposta. A fase final do processo de titulação depende da Justiça”, disse.