Anistia: discurso xenófobo desencadeia retrocesso global nos direitos humanos
Líderes mundiais que utilizam a retórica do “nós contra eles” estão criando um mundo mais dividido e mais perigoso, alerta a Anistia Internacional em seu novo relatório O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2016/2017, lançado hoje (21). O documento traz o panorama da situação dos direitos humanos em 159 países.
Para a organização, a retórica xenófoba que tem sido a tônica em discursos políticos na Europa e nos Estados Unidos vem desencadeando um retrocesso mundial nos direitos humanos e enfraquecendo a resposta da comunidade internacional às violações em massa como as que atingem refugiados e imigrantes.
“2016 foi o ano no qual o uso descarado de narrativa do tipo 'nós contra eles', de culpa, de ódio e de medo, ganharam proeminência global, num nível que não se via desde a década de 1930. São muitos os políticos que têm respondido a receios reais quanto à segurança e à economia utilizando-se da manipulação política identitária de forma separatista e perversa, na tentativa de ganhar votos”, disse o secretário-geral da Anistia, Salil Shetty, em nota.
Ele deu como exemplo de líderes com um discurso agressivo os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e da Hungria, Viktor Orban, com suas políticas anti-imigratórias.
Shetty também citou o líder turco Recep Tayyip Erdogan que, após sofrer tentativa de golpe, determinou a suspensão de veículos de imprensa e de organizações não governamentais, além da detenção de milhares de opositores.
Outro político apontado pela Anistia é o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, criticado por aplicar uma política brutal de combate às drogas, que inclui execuções extrajudiciais de pessoas suspeitas de usar ou vender drogas.
Crises
A Anistia Internacional alerta que este ano testemunhará a exacerbação das crises já em andamento causada por uma ausência de liderança no campo dos direitos humanos. Para a organização, o discurso xenofóbico também está ganhando forma no nível internacional por meio do enfraquecimento do multilateralismo para dar lugar a uma ordem mundial mais agressiva e pautada no confronto.
O relatório apontou que 36 países violaram leis internacionais enviando ilegalmente refugiados de volta a países onde seus direitos estavam sob risco.
O levantamento também afirma que o mundo tem uma longa lista de crises, mas pouca vontade política para enfrentá-las. O relatório documentou ainda crimes de guerra cometidos em pelo menos 23 países no ano passado.
“Líderes passam a demonizar determinados grupos, como migrantes, negros, mulheres, população LGBT [lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros], como a origem do problema que aquelas sociedades estão vivendo. Essa tática de demonização não é mais do que uma cortina de fumaça que tenta esconder a incapacidade desses dirigentes em suas obrigações de proteger a vida e o direito das pessoas”, disse a diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck.
Para a Anistia, a solidariedade global e a mobilização pública serão especialmente importantes para defender os ativistas dos direitos humanos que, muitas vezes, são vistos pelos governos como uma ameaça ao desenvolvimento econômico e à segurança.
Brasil
Em relação ao Brasil, o organismo avalia que a atual situação não pode significar retrocesso de direitos humanos no país. Para a organização internacional, a crise política, econômica e institucional vivida no país no ano passado paralisou os debates sobre políticas públicas de promoção de direitos humanos, contribuindo para o avanço de agendas conservadoras e o aumento das violações no campo e na cidade que afetam principalmente jovens negros e lideranças rurais.
Segundo Jurema Werneck, o Estado brasileiro não pode se omitir de sua responsabilidade de propor e implementar políticas públicas que promovam e garantam os direitos humanos.
“O que vimos em 2016 foi o desmantelamento de programas que garantiam a proteção a direitos previamente conquistados e a omissão do Estado em relação a temas críticos, como a segurança pública. Nenhuma crise – política, econômica ou institucional – pode ser usada como justificativa para a perda de direitos”, disse Jurema.
A diretora executiva deu como exemplo o programa de proteção aos defensores de direitos humanos, que, segundo ela, foi enfraquecido ao longo dos anos e suspenso no ano passado.
Para a Anistia Internacional, o Estado brasileiro tem falhado em seu papel de garantir o direito à vida por não ter apresentado um plano consistente para redução e prevenção de homicídios e pelo fato de agentes de segurança, principalmente policiais em serviço, serem responsáveis por milhares de mortes todos os anos, sobretudo de moradores de favelas e periferias.
A entidade de direitos humanos avalia que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita os gastos públicos pelos próximos 20 anos, aprovada no Congresso, pode ter efeitos negativos nos investimentos em educação e saúde. A PEC foi promulgada em 15 de dezembro e já entrou em vigor. O governo argumenta que o teto não afetará os repasses para as áreas.
Segundo a Anistia, propostas que prejudicam os direitos das mulheres, povos indígenas, gays e lésbicas estão em discussão no Congresso. A organização dá o exemplo do Estatuto da Família. Em setembro, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou mudanças no estatuto para definir família como a união entre um homem e uma mulher.
Jogos Olímpicos
O relatório destaca que as autoridades e os organizadores dos Jogos Olímpicos Rio 2016 não tomaram as medidas necessárias para evitar violações de direitos humanos pelas forças de segurança antes e durante o evento esportivo. Segundo a Anistia, durante as Olimpíadas, foram intensificadas as operações policiais em favelas. “Os moradores relataram horas de tiroteio intensos e abusos contra os direitos humanos, como buscas domiciliares ilegais, ameaças e agressões físicas”, diz o texto.
A organização também destaca que na passagem da Tocha Olímpica pelo estado do Rio de Janeiro e durante a realização dos Jogos, protestos pacíficos contra as Olimpíadas foram reprimidos com uso excessivo e desnecessário da força policial.
Manifestações
Segundo a Anistia, o ano de 2016 foi marcado por manifestações majoritariamente pacíficas sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff, reforma educacional, violência contra as mulheres, impactos dos Jogos Olímpicos e redução de gastos públicos com saúde e educação.
“A sociedade brasileira se provou maior do que as crises. Em 2016, nós vimos o crescimento da mobilização social. Vimos adolescentes e jovens estudantes lutando em defesa da educação e da escola pública. Vimos o movimento LGBT, das mulheres e negro denunciando e se mobilizando contra graves violações”, disse a diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil.