Prêmio Nobel conta como uma pergunta mudou a forma de combater o câncer no mundo
O cientista israelense Aaron Ciechanover chegou ao Brasil com a missão de inspirar novas gerações de cientistas. A visita é parte de um projeto do Prêmio Nobel que leva grandes mentes a centros de pesquisa ao redor do mundo para compartilhar suas histórias. A movimentação dentro e fora do auditório na Universidade de Brasília na manhã de quinta-feira (10), lotado de jovens, deixou evidente o interesse em ouvir a trajetória de um homem que, apostando na própria curiosidade e com muita persistência, fez descobertas científicas que hoje impactam milhões de pessoas. “É uma história longa, de quase 40 anos”, adiantou.
O grande feito de Ciechanover foi detectar um sistema chamado Ubiquitina, responsável por eliminar moléculas de proteínas danificadas ou desnecessárias para o organismo, conhecimento que mais tarde, descobriu-se, está intimamente ligado ao câncer e às doenças degenerativas. A identificação e mapeamento desse sistema que funciona como o “caminhão de lixo do corpo” lhe rendeu o Prêmio Nobel em Química em 2004, ao lado dos colegas Avram Hershko e Irwin Rose.
“Começou com a curiosidade, com uma pergunta, com a identificação de uma pergunta. E só então houve a formação de um sistema experimental que nos permitiu chegar aonde estamos hoje, que não é o fim, mas um novo começo, com o desenvolvimento de medicamentos que já estão sendo usados ao redor do mundo, salvando vidas e melhorando a qualidade de vida de milhões de pessoas”, disse.
Daí saiu a primeira lição da palestra, em que muitas dicas foram dadas para futuros cientistas. Ciechanover destacou que foram as descobertas de vários pesquisadores que vieram antes dele que viabilizaram os avanços que ele pôde fazer. O cientista que descobriu que as proteínas eram dinâmicas, por exemplo, mas não viu as implicações disso, tornou possível que outros desdobrassem sua descoberta mais a frente.
A descoberta do sistema Ubiquitina quebrou paradigmas biológicos importantes. “As pessoas presumiram por muitas décadas que nós nascemos com 2, 3 quilos, crescemos até os 17, 18 anos, chegando ao nosso peso final, e então carregamos todas as nossas proteínas a partir desse ponto até a nossa morte.”
Foi com muitas metáforas e simplificações que o palestrante conduziu o público ao universo desses componentes fundamentais à vida, para explicar que são essas moléculas que medeiam todas as funções orgânicas. “A proteína é a língua que a natureza fala”, romantizou. “Como a hemoglobina, que transporta o oxigênio, o trato digestivo, os rins, o pulmão, o cérebro, tudo funciona à base de proteínas. O DNA é importante, mas o jogo é jogado pelas proteínas”.
A pergunta certa
A pesquisa começou a partir de uma dúvida baseada em um fato científico que já era conhecido: as proteínas são muito sensíveis a mutações, a radiação, a temperatura. “A pergunta no início era: será que as proteínas do nosso corpo são destruídas?”
O cientista propôs que o público pensasse no que acontece se deixarmos um pedaço de carne em cima da mesa por algumas horas. “Você não vai poder consumi-la mais, pois entra em processo de degradação”. A nossa carne se comporta de forma idêntica a carne de outros animais, como a do boi ou do peixe que comemos, a não ser pelo fato de que está viva. “Então, as nossas proteínas estão vivendo em um ambiente de 37 graus Celsius, que é um ambiente deletério para proteínas. E ninguém havia pensado sobre isso? É um ambiente muito ruim, então sim, as proteínas sofrem danos o tempo todo”.
Com muito estudo, os pesquisadores concluíram que devia haver um mecanismo para remover constantemente, “online”, essas proteínas danificadas. “Também não pensávamos sobre isso, mas os elementos básicos para a vida, a temperatura e o oxigênio, são também os elementos mais tóxicos para as proteínas. É fundamental ter um mecanismo interno que atue entre a necessidade de viver nesse ambiente de 37 graus Celsius – um resultado da evolução, que chegou à temperatura ideal para que as reações bioquímicas necessárias para a vida ocorram – e ao mesmo tempo, com esses elementos que são tóxicos para o nosso corpo.”
“A natureza teve que evoluir de maneira muito sofisticada para remover as proteínas danificadas pela temperatura, oxigênio e outros fatores”, explicou. Além das moléculas danificadas, o corpo remove proteínas inúteis. “Podem ser funcionais, saudáveis, mas precisam ser removidas. Pensem no inverno. Temos a gripe e por causa dela produzimos os anticorpos. E o que fazemos com os anticorpos? Nós vivemos com ele até o próximo inverno? Não, nós removemos eles quando não estamos precisando. Essa lógica vale para vários processos.”
A descoberta
Os primeiros estudos aplicado dos mecanismos de destruição de proteínas, ainda na década de 70, foram em torno dos lisossomos, organelas [partícula limitada por membrana e que ficam dentro das células] que destroem componentes das células. Mas logo os pesquisadores perceberam que os lisossomos não agem de forma específica, portanto eram uma resposta parcial do sistema destrutivo.
“Tinha que ter mais coisa. O lisossomo degrada de uma maneira não seletiva, faltava algo nessa equação. E o que estava faltando era um mecanismo altamente específico. Se há milhões de moléculas de proteínas, de diferentes tipos, - há 20 mil tipos de proteína e cada uma tem entre 2 e 10 milhões de moléculas. Enfim, não importa, qualquer enzima tem milhões de moléculas. Se uma delas, somente uma, sofre com a radiação, uma mutação, é preciso detectar essa uma molécula defeituosa, “pegá-la” e degradá-la. Ou seja, o mecanismo é muito seletivo para conseguir pegar uma molécula no meio de milhões.”, explicou.
Foi então que os cientistas concluíram que esse mecanismo devia funcionar como um “policial” que fica “vigiando a célula para encontrar aquele ladrão que está flutuando lá dentro”, simplificou.
Uma vez terminada a etapa de identificar todos os lisossomos no laboratório, os cientistas pegaram células vermelhas maduras, as hemácias, “por serem uma área livre de lisossomos, que geravam ruídos e perturbavam o ambiente da célula”, dificultando a compreensão do mecanismo de destruição que estava por ser descoberto. “Achávamos que era a célula ideal e deu certo”. Publicaram o primeiro artigo sobre o sistema Ubiquitina em 1978.
A pesquisa continuou, mas Aaron Ciechanover destacou que os envolvidos nesses estudos só viram o panorama do sistema “caminhão de lixo” no ano 2000, mesmo tendo identificado várias proteínas que participavam do processo ao longo de quase duas décadas. “Com o Projeto Genoma [esforço internacional para identificar e mapear o código genético humano], descobrimos que o nosso sistema continha cerca de 2 mil proteínas, 10% do total do genoma humano. Ou seja, 10% do nosso genoma é devotado a retirar o “lixo”, atuam na eliminação de lixo. É mais do que é dedicado à síntese proteica. Isso mostra a importância do processo.”
Explicado por quem descobriu, o processo da Ubiquitina até parece simples. “Temos um substrato [resíduo] a ser degradado. A Ubiquitina é a cola molecular que promove o encontro entre o substrato que precisa ser reparado e uma ‘tesoura’ que vai cortar somente onde é necessário, com o reconhecimento de uma enzima. Se algo errado acontece com uma proteína, aí vem o policial, pega no flagra, coloca as algemas, que é a Ubiquitina, e a leva para ser ‘executada’. Parece engraçado, mas levou muito tempo para que entendêssemos como isso ocorre.”
Truques do câncer
Doutor em Medicina pela Universidade Hebraica, em Jerusalém, Aaron Ciechanoven esclareceu que a primeira ligação entre a descoberta e a medicina é o fato de que há muitas doenças causadas por aberrações nesse sistema de destruição. Existe uma quantidade ideal de proteínas degradadas que podemos ter no corpo e a formação de cânceres faz parte desse contexto. “A nossa pressão arterial é um número, o nível de glicose é um número. As proteínas também precisam de números certos. Elas precisam estar no corpo em uma quantidade ideal.” A hemoglobina, por exemplo, que é uma proteína, causa anemia se estiver baixa ou faz o sangue se tornar viscoso e coagular, em caso de excesso.
Aaron usou uma metáfora para o sistema “lixeiro” do organismo, comparando-o a um carro, que tem como principais controles o acelerador e o freio, em referência às proteínas que servem para desencadear processos ou interrompê-los.
“Qual é o freio dos tumores? São proteínas que suprimem esse tumor. A proteína desse tipo mais bem estudada é a P53, que é uma proteína de controle de qualidade. Ela percebe quando há uma modificação, que algo aconteceu com aquela célula, então ela evita que o ciclo celular siga em frente para tentar reparar o dano. Se ela não consegue reparar o dano, ela mata a célula por meio de um sistema chamado apoptose [autodestruição celular]. Esse é o papel dessa proteína. Ela é muito boa, não conseguimos viver sem ela. Ela nos protege da radiação e de outros danos que podem ocorrer ao nosso genoma.”
O Papiloma Virus, conhecido como HPV, que causa câncer no colo de útero, interage com essa proteína. Esse vírus entra nas células do epitélio do colo do útero e “se comporta como um ladrão de banco”. A primeira coisa que faz, é “desligar o alarme”, que é a P53. “Quando o vírus vê a P53, ele liga proteínas a ela. Então, o sistema Ubiquitina entende que houve uma ligação e que deve destruir e jogar a P53 fora, que é exatamente o que o vírus quer, pois o mecanismo de defesa vai embora. O vírus remove as proteínas de controle de qualidade e transforma a célula depois disso”. A degradação de proteínas “boas” é um dos mecanismos do câncer.
Outro mecanismo que desencadeia vários tipos de cânceres são as mudanças em partes da célula que mudam suas funções de forma que não as alterem a ponto de serem reconhecidas como defeituosa pelo sistema de destruição. “É o caso do câncer de mama, por exemplo, que é causado por uma falha em um receptor chamado EGF, que permite a divisão celular excessiva. A célula se torna degradada e o sistema Ubiquitina não consegue reconhecê-la”. Isso ocorre em vários tipos de câncer.
Alguns medicamentos já surgiram a partir desse conhecimento. A primeira droga foi desenvolvida no início de 2000 e é capaz de auxiliar o sistema Ubiquitina a reconhecer problemas e destruir células.
As células produzem milhares de moléculas o tempo todo, como em uma fábrica. Portanto, é natural que algumas unidades – a estimativa é 1% - saiam com defeito. “As pessoas podem lidar com 100 ou 10 mil moléculas defeituosas, mas se você inibe o sistema da Ubiquitina, você não consegue lidar com o excesso dessas moléculas. E a reação a isso é uma resposta celular, é uma reação de stress que mata a célula. Então basicamente estamos usando esse medicamento que não é uma quimioterapia, é um medicamento muito inteligente que induz a morte celular decorrente do acúmulo de proteínas anormais. Agora temos uma nova geração desses medicamentos que vão curar doenças que hoje não podem ser tratadas”, orgulha-se.
Ciência pura
O Nobel fechou sua fala defendendo a liberdade dos cientistas na condução de suas pesquisas. “Em muitos países as pessoas estão sendo forçadas a fazer uma ciência prática, para o mercado, para estudar o câncer, a agricultura, enfim. Eu dei aqui hoje um exemplo de ciência que começou com a curiosidade e a identificação de uma pergunta que abriu os horizontes. Não tinha resposta e não focava em nenhuma doença específica, ou em um medicamento. Ainda assim, a pesquisa se tornou uma estrela da ciência moderna e nós já temos uma indústria de milhões de dólares, que vai se tornar cada vez maior. Então esse é um exemplo de como a ciência está se comportando. Nós não sabemos os segredos da ciência, qual é o horizonte”.
O cientista defende que é preciso “permitir que os cientistas façam o seu trabalho e bons resultados estão garantidos”. Ele argumenta que se for dito às pessoas que elas devem fazer algo específico, “se impusermos um dever aos cientistas, isso não vai funcionar”, porque segundo ele é preciso ter um equilíbrio entre as descobertas básicas e suas aplicações. “Se todo mundo trabalhar só com a aplicação, não teremos novas descobertas básicas e o mundo da inovação vai morrer gradualmente”.
Fonte: Premio Nobel conta como uma pergunta mudou a forma de combater o câncer no mundo