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Tombado pela Unesco, Cais do Valongo aguarda ações de conservação

Isabela Vieira - Repórter da Agência Brasil
Publicado em 09/07/2018 - 18:38
Rio de Janeiro

Passado um ano do tombamento do complexo do sítio arqueológico Cais do Valongo, a prefeitura do Rio de Janeiro é cobrada por não cumprir compromissos assumidos com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O local foi identificado como o principal porto de desembarque de africanos escravizados no mundo. Porém, está sem iluminação adequada, sem uma placa de sinalização e sem previsão de ter instalado um centro de interpretação sobre o significado do cais. Outra preocupação é com as peças arqueológicas resgatadas durante as escavações há seis anos e que deveriam ser expostas até o fim de 2018.

As ações previstas no projeto de candidatura não foram cumpridas até hoje. Além dos projetos mencionados, que são de responsabilidade da prefeitura, cabe ao o governo federal a construção do Memorial da Diáspora, que também consta da candidatura, no Armazém Docas. Nada foi feito, pois o local aguarda o fim de uma disputa judicial.

À Agência Brasil, o presidente do Conselho Estadual dos Direitos dos Negros (Cedine), Luiz Eduardo Negrogun, avaliou que, desde que a prefeitura apresentou a proposta de erguer, sozinha, o Museu da Escravidão e da Liberdade (MEL), os projetos no Cais do Valongo foram abandonados. O sítio, ao ar livre, além de não ser sinalizado, é rotineiramente invadido por pessoas em situação de rua e sofre com depredações. A prefeitura nega.

“Depois de um ano do tombamento, estamos vendo o estado deplorável que o Valongo está. A prefeitura não cumpriu os itens da candidatura”, afirmou à reportagem. “O museu não é o que deveria ser feito, não é um projeto conjunto, não tem apoio das entidades do movimento negro [que atuam em defesa do Valongo]; nem o nome quiseram discutir”, revelou.


Após um ano de receber título de patrimônio mundial, Cais do Valongo aguarda ações de conservação - Tomaz Silva/Agência Brasil

 

Essa é a mesma preocupação do jornalista Rubem Confete, ativista e profundo conhecedor da região. Ele cobrou também a exposição das peças encontradas durante as escavações que redescobriram as pedras pisadas do cais. Confete lembrou que, desde que a Universidade Federal do Rio de Janeiro terminou o trabalho de campo, em 2012, a sociedade não teve mais informações sobre o material. “Tiraram dali quatro ou cinco contêineres de peças, utensílios, material religioso, está tudo escondido, é nossa história e não estamos tendo acesso a nada”, reclamou.

Tesouros escondidos

As peças arqueológicas resgatadas durante as escavações estão sob a guarda da prefeitura desde 2012. Na época, a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Tânia Andrade de Lima,recolheu um dos mais significativos acervos do período escravagista. Ao fim do trabalho de campo, o material foi entregue à prefeitura que, por falta de verbas, não fez a curadoria e manteve o acervo desabrigado, inacessível para estudo, segundo a professora.

Após ação do Ministério Público Federal (MPF), uma empresa especializada foi contratada pelo município para abrir as caixas. O trabalho recomeçou em abril deste ano e a intenção da prefeitura é exibir as peças ao público em breve, conforme o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão da prefeitura responsável pela guarda do material.

Artefatos arqueológicos encontrados em escavações na zona portuária estão em inventário no Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana, na Gamboa
Artefatos encontrados nas escavações estão sendo inventariados no Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana - Tomaz Silva/Agência Brasil

 

“Estamos esperando desde aquela época, aguardando para poder estudar as peças, finalmente. Ocorre que antes, [a prefeitura] não tinha nem pessoal, nem condições de infraestrutura para nos atender e tivemos que suspender as análises por absoluta falta de condições”, informou a professora. “Temos, em andamento, teses de doutorado, mestrado, artigos científicos sobre esse material. Só nós temos a autorização do Iphan para a análise”, frisou.

Uma avaliação preliminar, em 2012, já indicava que as peças ajudavam a montar o quebra-cabeça do tráfico de africanos, dando materialidade a tragédia, hoje considerada um crime contra a humanidade. “Esse material precisa ser estudado. Urgentemente. Essas peças não têm valor comercial. Porém, o valor histórico, religioso e científico é inestimável”, afirmou.

Herança africana

Também constam dos compromissos do Poder Público o apoio a projetos comunitários relacionados à herança africana na região, mas eles não avançaram ou foram suspensos.

A administradora do Instituto dos Pretos Novos (IPN), uma das organizações que participaram da indicação do cais a patrimônio, Merced Guimarães, afirma que a prefeitura abandonou as entidades que cuidam da manutenção da memória do Valongo. O IPN, por exemplo, que recebe mais 20 mil visitantes por ano, perdeu patrocínio da prefeitura em 2018, assim como outras organizações que trabalham na área. O local mantém o Cemitério de Pretos Novos, onde eram jogados os corpos dos africanos que não resistiam à travessia nos tumbeiros ou morriam nos primeiros dias, principalmente crianças e adolescentes.

O mais recente “ato de sabotagem”, segundo Merced, foi a marcação da lavagem do Cais Valongo para esta segunda-feira (9), às 10h. Tradicionalmente, o evento é realizado em um sábado. “Isso não é certo, é esvaziamento, impossibilita o povo de axé de participar”.

Outro exemplo, lembra Merced, foi o veto inicial do prefeito Marcelo Crivella ao registro da comunidade quilombola Pedra do Sal, que fica próxima ao cais, como patrimônio imaterial. A área é reconhecida pelo Conselho do Patrimônio da Unesco e pela Fundação Palmares.

Sítio arqueológico

Pelo Cais do Valongo, redescoberto durante obras de infraestrutura na região portuária, passaram cerca de 900 mil africanos escravizados de diversas partes da África. A prática deslocou 15 milhões de pessoas, das quais 4 milhões vieram à força ao Brasil – o último país nas Américas a abolir a escravidão, há 130 anos. O sistema vigorou por 300 anos no país e teve repercussão na cultura, na história e, principalmente, na economia brasileira, uma potência no período.

"O Brasil foi a maior potência agrícola do mundo nos séculos 17, 18 e 19. No fim do século 19, 99% do café consumido na Europa era brasileiro. E essa tecnologia só pode se desenvolver porque contou com utensílios agrícolas trazidas pelos africanos, que cultivavam uma terra semelhante à nossa. O Brasil foi o maior produtor de ouro no século 18, 80% do minério que circulou na Europa, nesse período, saiu do Brasil. Portugal não sabia nada de mineralogia. Toda essa expertise veio trazida para cá”, afirma o antropólogo.

Hoje, o Brasil tem a maior comunidade de descendentes de africanos fora daquele continente.

* Colaboraram Tâmara Freire e Joana Moscatelli, do Radiojornalismo.