Tombado pela Unesco, Cais do Valongo aguarda ações de conservação
Passado um ano do tombamento do complexo do sítio arqueológico Cais do Valongo, a prefeitura do Rio de Janeiro é cobrada por não cumprir compromissos assumidos com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O local foi identificado como o principal porto de desembarque de africanos escravizados no mundo. Porém, está sem iluminação adequada, sem uma placa de sinalização e sem previsão de ter instalado um centro de interpretação sobre o significado do cais. Outra preocupação é com as peças arqueológicas resgatadas durante as escavações há seis anos e que deveriam ser expostas até o fim de 2018.
As ações previstas no projeto de candidatura não foram cumpridas até hoje. Além dos projetos mencionados, que são de responsabilidade da prefeitura, cabe ao o governo federal a construção do Memorial da Diáspora, que também consta da candidatura, no Armazém Docas. Nada foi feito, pois o local aguarda o fim de uma disputa judicial.
À Agência Brasil, o presidente do Conselho Estadual dos Direitos dos Negros (Cedine), Luiz Eduardo Negrogun, avaliou que, desde que a prefeitura apresentou a proposta de erguer, sozinha, o Museu da Escravidão e da Liberdade (MEL), os projetos no Cais do Valongo foram abandonados. O sítio, ao ar livre, além de não ser sinalizado, é rotineiramente invadido por pessoas em situação de rua e sofre com depredações. A prefeitura nega.
“Depois de um ano do tombamento, estamos vendo o estado deplorável que o Valongo está. A prefeitura não cumpriu os itens da candidatura”, afirmou à reportagem. “O museu não é o que deveria ser feito, não é um projeto conjunto, não tem apoio das entidades do movimento negro [que atuam em defesa do Valongo]; nem o nome quiseram discutir”, revelou.
Essa é a mesma preocupação do jornalista Rubem Confete, ativista e profundo conhecedor da região. Ele cobrou também a exposição das peças encontradas durante as escavações que redescobriram as pedras pisadas do cais. Confete lembrou que, desde que a Universidade Federal do Rio de Janeiro terminou o trabalho de campo, em 2012, a sociedade não teve mais informações sobre o material. “Tiraram dali quatro ou cinco contêineres de peças, utensílios, material religioso, está tudo escondido, é nossa história e não estamos tendo acesso a nada”, reclamou.
Tesouros escondidos
As peças arqueológicas resgatadas durante as escavações estão sob a guarda da prefeitura desde 2012. Na época, a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Tânia Andrade de Lima,recolheu um dos mais significativos acervos do período escravagista. Ao fim do trabalho de campo, o material foi entregue à prefeitura que, por falta de verbas, não fez a curadoria e manteve o acervo desabrigado, inacessível para estudo, segundo a professora.
Após ação do Ministério Público Federal (MPF), uma empresa especializada foi contratada pelo município para abrir as caixas. O trabalho recomeçou em abril deste ano e a intenção da prefeitura é exibir as peças ao público em breve, conforme o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão da prefeitura responsável pela guarda do material.
“Estamos esperando desde aquela época, aguardando para poder estudar as peças, finalmente. Ocorre que antes, [a prefeitura] não tinha nem pessoal, nem condições de infraestrutura para nos atender e tivemos que suspender as análises por absoluta falta de condições”, informou a professora. “Temos, em andamento, teses de doutorado, mestrado, artigos científicos sobre esse material. Só nós temos a autorização do Iphan para a análise”, frisou.
Uma avaliação preliminar, em 2012, já indicava que as peças ajudavam a montar o quebra-cabeça do tráfico de africanos, dando materialidade a tragédia, hoje considerada um crime contra a humanidade. “Esse material precisa ser estudado. Urgentemente. Essas peças não têm valor comercial. Porém, o valor histórico, religioso e científico é inestimável”, afirmou.
Herança africana
Também constam dos compromissos do Poder Público o apoio a projetos comunitários relacionados à herança africana na região, mas eles não avançaram ou foram suspensos.
A administradora do Instituto dos Pretos Novos (IPN), uma das organizações que participaram da indicação do cais a patrimônio, Merced Guimarães, afirma que a prefeitura abandonou as entidades que cuidam da manutenção da memória do Valongo. O IPN, por exemplo, que recebe mais 20 mil visitantes por ano, perdeu patrocínio da prefeitura em 2018, assim como outras organizações que trabalham na área. O local mantém o Cemitério de Pretos Novos, onde eram jogados os corpos dos africanos que não resistiam à travessia nos tumbeiros ou morriam nos primeiros dias, principalmente crianças e adolescentes.
O mais recente “ato de sabotagem”, segundo Merced, foi a marcação da lavagem do Cais Valongo para esta segunda-feira (9), às 10h. Tradicionalmente, o evento é realizado em um sábado. “Isso não é certo, é esvaziamento, impossibilita o povo de axé de participar”.
Outro exemplo, lembra Merced, foi o veto inicial do prefeito Marcelo Crivella ao registro da comunidade quilombola Pedra do Sal, que fica próxima ao cais, como patrimônio imaterial. A área é reconhecida pelo Conselho do Patrimônio da Unesco e pela Fundação Palmares.
Sítio arqueológico
Pelo Cais do Valongo, redescoberto durante obras de infraestrutura na região portuária, passaram cerca de 900 mil africanos escravizados de diversas partes da África. A prática deslocou 15 milhões de pessoas, das quais 4 milhões vieram à força ao Brasil – o último país nas Américas a abolir a escravidão, há 130 anos. O sistema vigorou por 300 anos no país e teve repercussão na cultura, na história e, principalmente, na economia brasileira, uma potência no período.
"O Brasil foi a maior potência agrícola do mundo nos séculos 17, 18 e 19. No fim do século 19, 99% do café consumido na Europa era brasileiro. E essa tecnologia só pode se desenvolver porque contou com utensílios agrícolas trazidas pelos africanos, que cultivavam uma terra semelhante à nossa. O Brasil foi o maior produtor de ouro no século 18, 80% do minério que circulou na Europa, nesse período, saiu do Brasil. Portugal não sabia nada de mineralogia. Toda essa expertise veio trazida para cá”, afirma o antropólogo.
Hoje, o Brasil tem a maior comunidade de descendentes de africanos fora daquele continente.
* Colaboraram Tâmara Freire e Joana Moscatelli, do Radiojornalismo.