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Saúde

Principal motivo para a não doação de um órgão é a negativa familiar

Elaine Patricia Cruz - Repórter da Agência Brasil
Publicado em 27/09/2019 - 17:00
São Paulo
transplantes
© Arquivo/Elza Fiúza/Agência Brasil

A negativa familiar é um dos principais motivos para que um órgão não seja doado no Brasil. No ano passado, 43% das famílias, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), recusaram a doação de órgãos de seus parentes após morte encefálica comprovada.

Dados do Ministério da Saúde mostram que, no ano passado, das 6.476 entrevistas familiares para autorização de doação, houve 2.716 negativas, somando 42%, número que vem se mantendo praticamente constante ao longo dos anos.

“O transplante só pode ocorrer se houver doação de órgãos”, ressalta Valter Duro Garcia, médico responsável pelos transplantes renais na Santa Casa de Porto Alegre e editor do Registro Brasileiro de Transplantes, além de membro do Conselho Consultivo da ABTO. “Se eu estivesse na lista [de espera por órgão], eu iria gostar de receber [o órgão]. Então, por que não doar? A doação é uma troca. E há muito mais possibilidade de uma pessoa estar na fila [por um transplante] do que ser um doador, três a quatro vezes mais possibilidade”, disse. 

Uma das razões para a recusa dos parentes em doar órgãos é a falta de conhecimento sobre o que é a morte encefálica, um processo “absolutamente irreversível”, segundo o médico.

“Para ser doador, tem que ter morte encefálica, que é quando há uma lesão grave na cabeça [o que pode acontecer] após se levar um tiro, ter um acidente de trânsito, principalmente por moto. Ter um tumor no cérebro ou meningite, por exemplo”, explicou. Quando o cérebro para de funcionar, acrescenta, a pessoa para de respirar, e só continua respirando por meio artificial. Nesse momento em que ocorre a morte encefálica é que os médicos procuram a família para pedir autorização para que os órgãos dessa pessoa possam ser doados. “Um doador pode salvar até oito pessoas”, lembra Valter Garcia.

Doações

O número de doações de órgãos vinha crescendo no Brasil. Segundo a ABTO, no ano passado o crescimento na taxa de doadores efetivos de órgãos cresceu 2,4%, atingindo 17 doadores por milhão de população (pmp), mesmo número divulgado pelo Ministério da Saúde, mas ainda abaixo da taxa prevista, que era de 18 doadores por milhão de população.

Mas neste ano, entre janeiro e março, a taxa de efetivação caiu, passando para 16,8 doadores por milhão de população. Segundo a associação, esse resultado do primeiro trimestre praticamente inviabiliza a obtenção da meta prevista para este ano, que seria de 20 doadores por milhão de população. O que é agravado, segundo a ABTO, pelo fato de que, além da queda na taxa de doadores, houve também um baixo aproveitamento dos órgãos doados.

“Os transplantes de órgãos no Brasil começaram nos anos 60. Em 1964 aconteceu o primeiro transplante de rim; em 1968, de coração, fígado, pâncreas”, disse o médico Valter Garcia. “Era uma época heroica, até 1987. Em 1988, começamos uma fase mais romântica, porque não tinha uma regulação específica, não tinha financiamento e nem controle. A partir de 1997 se estabeleceu uma política de transplante no Brasil. Naquela época, tínhamos três doadores por milhão de população (pmp) e se fazia menos de mil transplantes de rim, menos de 800 de fígado e muito pouco de transplante de coração e de pulmão”, lembra.

“Em 2007, houve uma série de modificações importantes e se fez planejamento para dez anos para se chegar em 2017 a 20 (pmp) doadores. Até 2014 cumprimos essa meta. Com a crise econômica e uma série de fatores, entre 2015 e 2016 não houve aumento. Em 2017, subimos para 16,6 (ppm). Não chegamos aos 20 (pmp), mas chegamos próximo. E então fizemos um novo planejamento até 2021”, explicou. “Esse ano planejamos chegar a 20 [pmp]. Mas estamos agora com cerca de 16,9 e vamos chegar até 18, mas não atingimos a meta. Possivelmente vamos atrasar em um ano a meta dos 24 por milhão de população”.

A dificuldade para que a taxa de doações cresça não ocorre só no Brasil, mas é manifestada aqui pela grande desigualdade entre os estados, disse Valter Garcia. Em Santa Catarina e no Paraná, por exemplo, a taxa é maior que nos Estados Unidos. Por outro lado, no Amapá não havia qualquer doador.

Fila

No ano passado, a estimativa da ABTO apontava que 39.663 pessoas estavam na fila esperando por um transplante de órgãos. Já o número de transplantes realizados no país no ano passado somou 22.668 casos. No ano passado, a maior fila era por córnea, estimada em 18.689.

O ideal, disse Valter Garcia, seria que o número de transplantes no país fosse o mesmo do que a quantidade de pessoas nas filas. Mas a condição ideal não existe em qualquer país do mundo. “A Espanha está próxima disso, mas não alcançou ainda. Estamos fazendo [no Brasil] 60% dos transplantes de rim que precisamos, 38% dos transplantes de fígado, menos de 20% dos transplantes de coração e 10% dos transplantes de pulmão que precisamos. Estamos ainda muito longe, mas estamos aumentando”, disse o médico.

Segundo ele, essa condição aumentaria de duas maneiras. A primeira, ampliando o número de doadores. A segunda, melhorando a utilização dos órgãos doados. “E isso é um pouco mais difícil, porque se uma pessoa doa os órgãos em Santarém, que está a mil quilômetros de [distância ] Belém ou de Manaus, e nenhum desses lugares faz transplante de pulmão ou de coração, teria que ir para alguém de Brasília. Daria para ir buscar o fígado, mas não daria para buscar o pulmão ou o coração, cujo prazo é de quatro horas para eles serem retirados e implantados. Teria que ter um centro de pulmão e de coração na Região Norte e não temos, por exemplo”.

Doadores

Para José Medina Pestana, diretor do Hospital do Rim e Hipertensão de São Paulo, local onde mais se realiza transplante de rim em todo o mundo, o número de transplantes do país poderia dobrar se houvesse maior número de doadores e se o país conseguisse fazer uma maior utilização dos órgãos dos potenciais doadores. Além disso, ele citou também a necessidade de ser corrigir a disparidade geográfica no país. “A única distorção do Programa Nacional de Transplante é essa, qualquer pessoa [deveria] ter a oportunidade igual de ser transplantada na região onde ele resida. Mas enquanto uma pessoa não consegue ser transplantada na Região Norte, o Ministério da Saúde oferece a oportunidade para que ela possa se matricular em uma região onde ela possa fazer o transplante”, disse.

Ministério

Segundo o ministro da Saúde interino, João Gabbardo, o governo tem procurado diminuir essas diferenças nos estados. “Os médicos especialistas e maiores especialistas de São Paulo, através do Proadi [Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional], com recurso de isenção fiscal do governo federal, estão capacitando profissionais nos outros estados. Estamos levando daqui de São Paulo, do Rio Grande do Sul e do Paraná, os melhores especialistas e as melhores experiências para treinar pessoas nos outros estados. Não adianta só a gente ficar trazendo as pessoas de lá para São Paulo. Temos que treinar as pessoas nesses estados para que elas se desenvolvam. Hoje o estado do Ceará e de Pernambuco já são grandes transplantadores de órgãos. Mas é necessário que a gente ainda capacite pessoas em outros locais”.

Morte encefálica

Segundo o médico Valter Garcia, outro problema que prejudica as doações se refere às notificações de morte encefálica no Brasil. De acordo com ele, só 70% das mortes encefálicas que ocorrem no país são detectadas. “Tem muita morte encefálica que não se faz diagnóstico”, disse.

“Temos que trabalhar na detecção das mortes encefálicas. De cada 100 pessoas que morrem, uma morre em morte encefálica. E só essa pode ser doadora de órgãos. A gente imagina que tenha hoje, no Brasil, em torno de 20 mil mortes encefálicas por ano. Mas o que acontece é que, em muitos lugares, não se consegue detectar isso. Faltam exames de imagem para fazer o diagnóstico, faltam especialistas capacitados. Isso está melhorando. Mas ainda tem que melhorar”, disse Garcia.

O transplante

Segundo o Ministério da Saúde, o transplante de órgãos é um procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão [coração, fígado, pâncreas, pulmão e rim] ou tecido [medula óssea, ossos e córneas] para uma pessoa doente por outro órgão ou tecido normal de um doador, vivo ou morto.

Cada órgão tem um prazo máximo para ser transplantado. O coração, por exemplo, deve ser colocado em outro corpo no prazo de até 4 horas. Já o tempo de isquemia do rim é de 48 horas. Os órgãos doados vão para pacientes que aguardam em uma fila única, definida pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada estado e controlada pelo Sistema Nacional de Transplantes (STN).

No Brasil, o transplante só é realizado com autorização. No caso do doador ser vivo, basta ele concordar com a doação, desde que ela não prejudique sua própria saúde. O doador vivo pode doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte do pulmão. Pela lei, parentes até o quarto grau e cônjuges podem ser doadores. Não parentes, só com autorização judicial.

Pela Lei 9.434, a doação de órgãos pós-morte só pode ser feita quando for constatada a morte encefálica, geralmente provocada por traumatismo craniano ou derrame cerebral, que é definida como a perda completa e irreversível das funções encefálicas (cerebrais) e do tronco cerebral. Quando ocorre a morte encefálica, o órgão dessa pessoa só poderão ser doados caso haja autorização de um familiar. Na Europa, basta o consentimento presumido, em que a pessoa, em vida, autoriza a doação de seus órgãos, para que a doação seja feita.

Projeto de lei

Tramita no Senado Federal um projeto de lei para permitir a doação por manifestação própria da vontade, feito ainda em vida e sob acompanhamento de testemunhas. Se a pessoa não tomar essa decisão ainda em vida, a família então seria a responsável pela doação após sua morte. “É um registro informatizado de candidatos a doadores após a morte. Se eu quiser ser doador após a morte, eu assino um documento em frente a testemunhas e isso vai para um sistema informatizado fechado e controlado pelo Judiciário e, a cada vez que uma pessoa tiver uma morte encefálica, a Central de Transplante daquele estado entra em contato e analisa se ele está inscrito como doador”, prevê o projeto de lei.

Hoje, para ser um doador, a pessoa precisa conversar muito com sua família sobre o seu desejo e deixar claro que eles poderão autorizar a doação de seus órgãos. Pela legislação brasileira, não basta a vontade do doador, a família precisa autorizar a doação.