Crise de refugiados e violência ameaçaram direitos humanos em 2015, diz Anistia
Calamidade, sofrimento, violência, abuso, injustiça e discriminação são algumas das palavras mais recorrentes nas 238 páginas do relatório da Anistia Internacional O Estado dos Direitos Humanos no Mundo – 2015, divulgado hoje (23). De acordo com o estudo, as políticas e mecanismos de garantia de direitos humanos regrediram em todo o planeta no ano passado. Dos conflitos armados à fome, da repressão governamental à impunidade de agentes públicos, a lista de barbáries é longa e continua crescendo, segundo a entidade.
“Termos chegado a um ponto tão baixo justamente quando a ONU [Organização das Nações Unidas] completa 70 anos, depois de sua criação exortar as nações a se unirem para ‘salvar as gerações futuras do flagelo da guerra’ e ‘reafirmar a crença nos direitos humanos fundamentais’, coloca-nos uma questão simples, mas inevitável: será o sistema de leis e instituições internacionais adequado para a urgente tarefa de proteger os direitos humanos?”, questiona o secretário-geral da Anistia, Salil Shetty, na introdução do relatório.
Crise migratória na Europa
Somando-se a mazelas já conhecidas no planeta e antigos conflitos armados internos e entre Estados, a crise de refugiados em 2015, sobretudo de sírios, evidenciou a incapacidade do sistema internacional em lidar com deslocamentos em massa e crises humanitárias.
“O conflito sírio se tornou um exemplo da proteção inadequada de populações civis em risco e, de modo mais amplo, do fracasso sistemático das instituições em fazer valer o direito internacional”, afirma Shetty, ao enfatizar que o estudo não consegue “carregar a profundidade da tragédia que as crises de 2015 imprimiram em cada ser humano, sobretudo a crise dos refugiados, agora agravada pelo inverno no hemisfério Norte”.
Os poucos avanços e sinais de esperança em 2015, de acordo com o relatório, foram méritos da sociedade civil e dos movimentos sociais. Entre as conquistas, a Anistia Internacional destaca a presença de elementos de direitos humanos e a prestação de contas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU; as ações empreendidas em maio para impedir as remoções forçadas pelo projeto da rodovia de acesso a um porto em Mombaça, no Quênia; e a libertação de Filep Karma, prisioneiro de consciência em Papua após 65 mil mensagens de apoio do mundo inteiro.
“Essas conquistas não foram alcançadas pela benevolência dos Estados. Os governos devem permitir espaço e liberdade para que os ativistas e defensores dos direitos humanos realizem seu trabalho fundamental”, avalia o secretário-geral.
De acordo com o diretor executivo da Anistia no Brasil, Atila Roque, os dispositivos criados depois da 2ª Guerra Mundial para evitar tragédias ocasionadas nas duas grandes guerras – como o Tribunal Penal Internacional – têm sido esvaziados pelas grandes potências. “Um descompromisso que leva essas nações a não financiar os órgãos, como também, muitas vezes, a sabotar ativamente a atuação destes, com o uso do veto dos seis países no Conselho de Segurança das Nações Unidas contra ações em situações de crise humanitária.”
Para Roque, os países precisam rever esses comportamentos, e a sociedade deve pressioná-los nesse sentido.
Américas e Caribe
Nas Américas, as violações mais preocupantes em 2015, segundo a Anistia Internacional, foram as perseguições a defensores dos direitos humanos, principalmente aos que atuavam para enfrentar a corrupção ou defender direitos das mulheres e dos povos indígenas.
Sistemas de segurança e de Justiça fracos, corruptos e carentes de recursos compactuaram com as impunidades, diz o texto. De cada 100 homicídios cometidos na América Latina, por exemplo, apenas 20 resultaram em condenação.
No Brasil, o Poder Legislativo foi citado como fator de piora nos direitos humanos no ano passado pela aprovação de medidas conservadoras que atingem mulheres, jovens e indígenas, por exemplo. A violência policial, a repressão às manifestações sociais e remoções injustas provocadas pelas obras dos Jogos Olímpicos do Rio 2016 também contribuíram para o retrocesso dos direitos no país, segundo o relatório.
Apesar de a maioria das nações apoiar e ter ratificado normas e tratados internacionais de direitos humanos, em 2015 alguns países adotaram respostas militarizadas para enfrentar problemas sociais e políticos. O uso excessivo da força por agentes do Estado e as detenções arbitrárias foram registradas em vários países da região, entre eles Brasil, Venezuela e Estados Unidos. Os EUA também foram citados pela manutenção do Centro de Detenção em Guantánamo, em Cuba, e por serem o único país a realizar execuções no continente americano, com a pena de morte.
De acordo com a entidade, oito dos dez países mais violentos do mundo em 2015 são da América Latina e no Caribe. Em quatro deles – Brasil, Colômbia, México e Venezuela – se cometeu um de cada quatro homicídios violentos ocorridos no mundo.
A Anistia registrou relatos de níveis elevados de violência de gênero em países como Guatemala, Guiana, El Salvador, Jamaica, Trinidad e Tobago, entre outros. Torturas e maus tratos por policiais também foram registrados em grande escala nas Américas em 2015. O texto cita casos na Argentina, Bolívia, Brasil e México.
Apesar dos retrocessos, a região também teve iniciativas positivas de defesa dos direitos humanos em 2015, como o avanço nas conversações de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCs), e a criação de um mecanismo nacional para a prevenção da tortura e registro nacional das vítimas no Peru.
África
No continente africano, a impunidade foi uma das principais causas e força motriz de conflitos e instabilidades no ano passado, com pouca ou nenhuma responsabilização por crimes contra o direito internacional. Sob a justificativa de segurança nacional, combate ao terrorismo e manutenção da ordem pública, manifestações sociais foram interrompidas por agentes de segurança com força brutal e excessiva e prisões arbitrárias ocorreram em vários países, como Angola, África do Sul e Etiópia.
Denúncias de violência sexual e de gênero foram generalizadas no continente, e muitas crianças foram sequestradas ou recrutadas como soldados de grupos criminosos.
No entanto, a Anistia também identificou reformas e medidas positivas para os direitos humanos em diversos países africanos, como na Mauritânia, em que uma nova lei definiu a tortura e a escravidão como crimes contra a humanidade e baniu a detenção secreta.