Burocracia dificulta atendimento a crianças refugiadas desacompanhadas

Publicado em 22/06/2016 - 22:06 Por Flávia Villela - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro

O Brasil teve um aumento de mais de 2.000% no número de solicitações de refúgio em quatro anos, entre adultos e crianças, de acordo com o Comitê Nacional para Refugiados (Conare). Dos pedidos que envolvem refugiados na infância, 9,8% eram para crianças separadas ou desacompanhadas de um responsável legal.

O número é proporcionalmente pequeno, mas não para de crescer. Não bastasse o trauma da fuga forçada e a separação dos parentes, essas crianças ainda enfrentam dificuldades burocráticas da solicitação de refúgio, o que impede o acesso a uma série de direitos.

A situação é tão preocupante que foi tema de debate promovido hoje (22) pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em sua sede, no centro do Rio, em parceria com Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

Burocracia

O assistente de proteção do Acnur Diego Nardi chamou de urgente a situação dessas crianças que, por não terem um representante legal, precisam esperar de dois a oito meses para poder pedir asilo no Brasil. “As crianças que não têm ninguém são encaminhadas para um abrigo e o responsável pelo abrigo se torna o representante legal e dá o encaminhamento ao processo. No caso das crianças que chegam com um adulto, é necessária uma ação de guarda para ele receber a guarda dessa criança e então dar o procedimento de refúgio”, explicou.

Durante o processo, a falta de documento dificulta a matrícula na escola, o acesso a serviços de saúde e aos benefícios das políticas sociais, entre outros direitos, segundo Nardi. “A opção de criança desacompanhada ou separada não está nem no formulário de refúgio.”

Atualmente, a Defensoria Pública do Rio de janeiro cuida de oito casos envolvendo 12 crianças nessa condição. De acordo com a defensora pública Elisa Costa Cruz, subcoordenadora da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica) da defensoria, a maioria das crianças chega ao Brasil com algum familiar, porém sem a prova do parentesco.

“A Polícia Federal, nos últimos anos, tem recusado esse pedido [de refúgio] por essas crianças, que exige um documento comprovando o parentesco ou a guarda deferida por um juiz. Só que esse processo judicial demora. Enquanto isso, a criança não tem documento, ela é invisível para o Estado brasileiro”, criticou o assistente do Acnur.

“Essa criança precisa ter o direito de pedir o refúgio e resolver sua situação política com o Brasil e ao mesmo tempo do direito de proteção e bem-estar. Que o acesso ao refúgio não seja condicionado a uma regularização familiar. E só quem pode solucionar isso é a Polícia Federal”, acrescentou.

A policial federal Patrícia Dias Bevilacqua, que trabalha há cinco meses no setor de concessão de protocolo de solicitação de refúgio no Rio de Janeiro, disse que a orientação é assegurar o parentesco da criança para conceder o direito de permanência no país.

“É uma responsabilidade muito grande legitimar um protocolo sem ter certeza se aquele homem e aquela mulher são realmente os pais daquelas crianças, são realmente refugiados. Tenho regras e preciso obedecer alguns critérios para garantir o direito dessas crianças”, argumentou. “Precisa haver uma comunicação como a que está havendo aqui entre todos os órgãos, algum órgão que ampare essas pessoas que chegam indocumentadas”, sugeriu.

Atualmente, a PF orienta as pessoas a procurarem a Defensoria Pública e o consulado para solicitar documentos. Em seguida, um dossiê da Polícia Federal é enviado ao Conare que defere ou indefere o refúgio.

Agência para imigrantes e refugiados

Para o advogado da Cáritas no Rio de Janeiro, Fabrício Toledo, a situação de imigração e refúgio deveria ser de responsabilidade de uma agência específica. “Não deveria ser responsabilidade da Polícia Federal cuidar de assuntos que não são de segurança. A questão dos refugiados é de direitos humanos e proteção.”

Toledo ressaltou que o número de refugiados no Brasil ainda é pequeno, mas tende a crescer e o país precisa se preparar para essa nova realidade. “Esse é um tema novo para o Brasil, mesmo com o aumento de 2.000% do número de pessoas chegando, é um número irrelevante se comparado com alguns países. Mas é um desafio que precisamos enfrentar. Precisamos criar uma rede, uma estrutura que funciona automaticamente, que dê proteção efetiva assim que as crianças chegam”, disse.

Entre os desafios para receber e acolher crianças refugiadas separadas da família, os especialistas abordaram a necessidade de capacitação de profissionais envolvidos nos processos de solicitação de refúgio e de criação de um posto humanizado nos aeroportos internacionais com uma equipe multidisciplinar, com profissionais como assistentes sociais e psicólogos para garantir a proteção dessas crianças. “Além do despreparo para atender a esse público, tem a questão do preconceito. O Brasil tem um déficit democrático em relação a pessoas mais vulneráveis. Isso fica mais evidente em relação aos refugiados”, disse o advogado da Cáritas.

Crianças congolesas são maioria

A maior parte das crianças refugiadas desacompanhas de um representante legal vem do Congo, país africano que vive um conflito armado que já matou centenas de milhares de pessoas e causou o êxodo forçado de outra parte da população.

Há oito anos no Brasil, Charly Kongo é refugiado e hoje trabalha na Cáritas no atendimento a conterrâneos congoleses. Para ele, a falta de documentos faz com que as crianças sejam punidas duplamente por serem refugiadas. “Os adultos fizeram uma escolha de fugir e vir para cá. As crianças nem essa opção tiveram. Por isso, precisamos respeitá-las muito. Elas têm que aprender outro idioma, viver em um país diferente, sofrem muito preconceito nas escolas, acusados de traficantes ou prostitutas”, disse Kongo, que se tornou uma espécie de líder na comunidade congolesa no Rio.

O refugiado diz que conheceu o racismo no Brasil. “Lá [Congo] quase todos somos negros. Então, aqui sofremos o preconceito que os negros brasileiros já sofrem e o preconceito por sermos refugiados. As pessoas confundem com foragido ou fugitivo. Pensam que fizemos algo errado em nosso país e tivemos que fugir para cá”, lamentou.

Edição: Luana Lourenço

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