Tribunal aposta em campanha incomum para promover adoção de crianças mais velhas
Os irmãos capixabas Rian e Ícaro, de 11 e 10 anos, respectivamente, contam em um vídeo divulgado na internet que gostam de jogar bola, soltar pipa, andar de bicicleta e skate. Os meninos fazem parte de um grupo de 140 crianças e adolescentes acolhidos em abrigos que estão aptos para adoção no Espírito Santo. O número é pequeno diante do total de casais habilitados para adoção: 855 no estado. Nesta quinta-feira (25), é lembrado o Dia Nacional da Adoção.
A história de Rian e Ícaro é um retrato do descompasso dos números da adoção no Brasil. Dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) apontam que existem 7.626 crianças e jovens disponíveis e 39.711 brasileiros interessados em adotar. Ao contrário de outros países, o sistema brasileiro permite que as famílias adotantes escolham o perfil da criança desejada. Segundo o levantamento, 80,82% buscam crianças de até 5 anos, enquanto menos de um quarto (24,6 %) das crianças aptas da adoção está nesta faixa etária.
Na tentativa de equilibrar esse cenário e reverter histórias de crianças maiores de 8 anos, aquelas com irmãos ou as que têm alguma condição especial de saúde, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJ-ES) realiza a campanha “Esperando por você”. A medida busca estimular a adoção tardia e apresenta, por meio de vídeos e fotos, as crianças que aguardam uma família. Apesar de inicialmente parecer incomum, por expor a imagem das crianças, a campanha já colhe bons resultados.
"A gente ora pedindo uma família, para que possa dar tudo certo. E também espero que eu possa ser adotado, eu e meu irmão. Que uma pessoa boa possa vir nos pegar, nos levar, nos tratar com carinho. Que a gente possa respeitá-la, a casa dela. Não importa onde ela vai morar, pelo menos eu vou ter uma família", conta Ícaro em um dos vídeos da campanha.
Segundo o TJ-ES, todas as crianças concordaram em participar do projeto, e o uso de imagem foi autorizado pelos magistrados responsáveis, coordenadores dos abrigos e guardiões legais. A campanha foi inspirada em casos de sucessos semelhantes obtidos nos Estados Unidos, Russia, Bielorrússia.
Segundo o psicólogo da Corregedoria-Geral de Justiça do estado, Helerson Elias Silva, a ideia nasceu da necessidade do acolhimento de crianças que estão crescendo em abrigos sem pretensão de adoção. Segundo ele, que também é um dos coordenadores da campanha, a ação já tem apresentado retorno positivo.
“O que estamos colhendo é muito mais do que esperávamos. Um adolescente de 16 anos pediu para participar da campanha e nos disse: 'É uma chance que eu tenho, eu quero ter uma família'. Em uma semana já recebeu pretendente interessado”, conta.
A campanha do TJ-ES teve alcance nacional e, até o momento, recebeu mais de 200 e-mails de potenciais adotantes. Em um caso específico, há registro de 60 pessoas interessadas em apenas uma única criança.
“Essa criança [por meio dos processos legais] já buscou uma família em todos os cadastros e ninguém se interessou. A barreira acontece pelo preconceito, que vem da falta de conhecimento. Com a campanha, estamos levando essas crianças para ajudar a quebrar uma barreira inicial. Socialmente, tem essa coisa de que criança um pouco maior não vai obedecer. Mas elas estão tão ávidas para serem adotadas, vemos como elas colaboram. Essa criança pode completar uma família e dar muito amor. Estão prontas para adoção, enquanto a criança menor tem uma fila que demanda muito mais tempo”, explica Silva.
Adoção Tardia
Insegurança e medos são sentimentos frequentes entre os interessados em adotar quando o assunto é acolher uma criança acima de 2 anos. Segundo a psicóloga Sanmya Salomão, coordenadora do grupo de adoção tardia da Organização Não Governamental (ONG) Aconchego, em Brasília, desconstruir o tabu é a maior barreira.
“O mito de que a adoção de um bebê é facilitada por crescer dentro da família é muito grande. Nós temos que trabalhar com a ideia de filiação, que insere a aceitação mesmo daquela criança já vem com uma história”, afirma a psicóloga.
Na adoção tardia, a criança traz a bagagem de um período de desamparo. Ela não vivenciou situações imprescindíveis para seu desenvolvimento. Por isso, pode apresentar dificuldades de fala e cognitivas, resultado de privação afetiva, explica Sanmya Salomão.
“O que cabe a essa família é reconstruir com essa criança um caminho para o desenvolvimento mais pleno. Requer, por parte da criança, uma abertura para essa transformação. Os pais vêm com muitos tabus de que a criança pode ter um desvio de caráter, algum transtorno. Mas o mais difícil é o próprio tabu”.
O economista Flávio Santiago é pai adotivo de Maria*, de 7 anos. Após três meses de preparação, ele e a mulher adotaram a criança. Ele conta a ansiedade e alegria diárias de sair do trabalho e encontrar a filha, que o espera para brincar.
“O início foi muito difícil, de adaptação. A criança tinha que vencer o medo, todas as inexperiências que uma pessoa tem. Além de estar em uma casa diferente, uma outra família. E nós, do outro lado, também achando que seria tudo mil maravilhas. Não foi porque ela com 6 anos já veio com uma experiência de vida própria e nós também e precisamos fazer esse vínculo se encaixar”, disse.
Para ajudar na adaptação, os pais participam do grupo de apoio conduzido pela psicóloga Sanmya, que atende mais 30 famílias em reuniões mensais. “A primeira coisa é que a gente não pode idealizar o filho dos nossos sonhos, porque a gente acaba caindo no erro que até pais de filhos biológicos caem. No caso da adoção tardia, o primeiro ponto é respeitar a criança, que já vem com uma história de vida pronta. Não idealizar porque eles já têm um período de vida em que nós não estávamos presentes”, descreve Santiago.
Para o economista, o caminho da adoção tardia tem sido “gratificante”. “As pessoas têm que ter consciência que vão ter que se doar. É uma vida que está contigo agora. A satisfação que você tem de ver uma criança começar a ler, aprender a fazer contas, de se comportar como você ensina, a te tratar com carinho. A caminhada é muito difícil, mas a recompensa é ainda maior”.