Especialistas temem que ação de justiceiros leve à escalada da violência no Rio
A busca da população por uma resposta rápida aos assaltos ocorridos no último fim de semana nas praias da zona sul do Rio de Janeiro pode provocar o crescimento da violência, temem especialistas em segurança. Na internet, não é difícil encontrar quem defenda a ação de gangues de justiceiros, grupos organizados para atacar suspeitos de crimes cometidos por jovens e denunciados na imprensa. Para o sociólogo do Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Ignácio Cano, as autoridades precisam agir para evitar o agravamento dessa situação e o aumento do número de episódios de “justiça com as próprias mãos”.
"Não só os criminosos podem se armar mais como também um monte de gente que nunca cometeu crime pode achar que é melhor se armar porque pode ser vitimado. Isso não vai resolver o problema e vai gerar mais insegurança", alerta o especialista. Ele lembrou do caso, ocorrido no último domingo, em que um grupo espancou jovens retirados à força de um ônibus por suspeitarem da participação deles em assaltos.
O secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, também manifestou preocupação com a ação de grupos de justiceiros e disse, na última segunda-feira, temer "onde isso pode parar". Beltrame criticou decisão da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso que reforçou que os adolescentes só podem ser apreendidos se houver flagrantes. A decisão foi tomada após um pedido da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, motivado por operações policiais que detiveram adolescentes que seguiam em ônibus da zona norte para a zona sul. Para Beltrame, a polícia ficou "engessada". "Essa medida de nos tirar a prevenção pode resultar em pessoas que queiram fazer justiça com as próprias mãos. Não vamos permitir, mas é mais um esforço que a polícia terá que fazer".
Para Cano, o pronunciamento de Beltrame também é preocupante porque mostra a falta de um trabalho de inteligência. "Passa a impressão de que a prevenção tem que ser feita de forma ilegal, porque a decisão judicial só dá conta de reafirmar a lei, que diz que pessoas só podem ser presas em flagrante ou por decisão judicial. Isso, obviamente, não é verdade", diz ele, que considera que ações como parar os ônibus que vem da zona norte ineficientes e preconceituosas.
"Quando a polícia e o Beltrame dizem que tem de parar todo mundo nos ônibus, estão confessando que não há inteligência, que não há investigação e que não se sabe quem são os responsáveis", diz. Para ele, o monitoramento de grupos que se organizam para cometer roubos é possível. "Esses grupos não são sigilosos, não são terroristas. Essas pessoas todas têm redes de comunicação".
Na última quarta-feira (23), o governador Luiz Fernando Pezão disse que o trabalho de inteligência é feito com o uso da tecnologia, mas que a polícia vai agir para impedir que adolescentes que se envolvem em tumultos em ônibus cheguem à praia. “Os que não queremos deixar chegar à praia são aqueles que não pagam passagem, andam em cima do ônibus ou com a metade do corpo para fora, jogando latas [em quem passa] e roubando passageiros”.
Para o cientista político João Trajano, as blitze punem de antemão jovens negros e pobres dos subúrbios. "Serão eles que têm promovido arrastão e baderna? São necessariamente os garotos que vem nos coletivos, que você não consegue sequer dizer em que coletivos eles vêm?"
ONG teme aumento do fosso entre favela e asfalto
Conhecida por fazer protestos pedindo paz na Praia de Copacabana, bairro palco de assaltos e ação de justiceiros, a organização não governamental Rio de Paz também considera preocupante o tratamento que tem sido dado à questão. "A resposta que parte da classe média está querendo dar ao problema pode ampliar o fosso entre a favela e o asfalto", diz o presidente da ONG, Antonio Carlos Costa, se referindo a bairros pobres e ricos da cidade.
Costa questiona o excessivo destaque, dado pela imprensa, aos crimes nas praias e lembra que o assassinato, nesta semana, do menino Herinaldo Vinícius da Santana, 11 anos, na Favela Parque Alegria, no Caju, não recebeu o mesmo tratamento. Apesar dos protestos de moradores em vias expressas da zona norte, não houve, na avaliação dele, comoção por parte dos cariocas.
"Vimos duas cenas emblemáticas esta semana, a do menino roubando celular no Arpoador e a imagem do Herinaldo, morto no Caju. O que chama a nossa atenção e aponta para uma patologia social é que o que houve no Arpoador comove mais a sociedade do que o que aconteceu no Caju. O motivo é simples: vivemos em uma cultura da banalização da vida do pobre", critica.
"Como essas pessoas [moradores das favelas] se sentem vendo uma megamobilização para garantir o lazer na praia em um contexto em que todos os dias pessoas morrem nas favelas?", questiona o presidente da Rio de Paz.
Montagens e notícias antigas acirram tensão nas redes sociais
Para a professora de jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) Sylvia Moretzsohn, a imprensa tem que desconstruir discursos preconceituosos, principalmente quando eles vêm das autoridades. Sylvia chama a atenção, no entanto, para o modo como as redes sociais podem ser usadas para estimular discriminação e acirrar o clima de medo. Ela cita como exemplo montagens de matérias jornalísticas com o resgate de imagens antigas como se fossem de crimes recentes, forçando uma sensação de insegurança ainda maior.
"As coisas são compartilhadas sem contexto, e as pessoas vão na onda do que são levadas a crer. Há esse transbordamento nas redes sociais, incontrolável do ponto de vista jornalístico", diz a pesquisadora.
Para ela, as pessoas esperam soluções simples e rápidas para problemas históricos e complexos e rejeitam qualquer tentativa de demonstrar essa complexidade. "Quero que minha vida seja tranquila, mas não quero saber como posso atingir o meu objetivo. E não quero que venham com histórias para complicar a minha capacidade de entender. É o tal do simples assim, mas nada é simples assim", afirma.
Cariocas pedem mais segurança
Enquanto os assaltos ocorriam no último fim de semana, o balconista Ecione Lopes, de 36 anos, trabalhava em uma das farmácias de Copacabana, bairro conhecido pela grande quantidade de idosos. O estabelecimento acabou fechando mais cedo seguindo a iniciativa de várias lojas do local que temiam depredações e roubos. Ele diz que o número de clientes caiu desde o último fim de semana. "Quando acontece isso, os idosos e aposentados deixam de sair de casa. As pessoas estão com medo", conta.
Morador de Ipanema, Lopes defende as revistas nos ônibus porque "não deve nada a ninguém" e acredita que essa seja uma forma de a população se defender. "Eu acho que o Poder Público está sem força para impor o respeito para o cidadão de bem. Estamos largados."
Presidente do movimento Viva Copacabana, que reúne moradores e empresários do bairro, Toni Teixeira diz ser contrário à ação de grupos que agridem suspeitos de crimes. "Não podemos admitir o crime, mas não posso admitir também que a pessoa parta para o desespero. Senão, virou a barbárie: um rouba, o outro rouba e o outro mete pancada. Aí, acabou o Estado".
Teixeira defende que o policiamento nas praias da zona sul seja reforçado pelas Forças Armadas. "As pessoas que vem têm mais facilidade de praticar o furto e não serem detidas por causa do excesso de gente. Tem que aumentar o efetivo, e, se precisar, pedir apoio das Forças Armadas."
Na última quinta-feira, a Polícia Militar anunciou um esquema de segurança especial para este fim de semana que conta com cerca de 700 agentes, incluindo policiais do Batalhão de Choque. Chamado de Operação Verão, o reforço, que é repetido todo ano nos meses em que as praias do Rio são mais frequentadas, foi antecipado.
Em uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, o coronel da Polícia Militar Ibis Pereira defendeu que o reforço no policiamento não vai resolver o problema dos arrastões, que se repete na cidade desde 1991. Segundo ele, o fato de ser preciso montar "uma operação de guerra" para que as pessoas desfrutem da praia deveria provocar uma reflexão profunda sobre a identidade da cidade.
"A polícia ostensiva sozinha não faz prevenção de arrastão. O que é o arrastão? Por que o arrastão? O que esses garotos estão querendo? Será que eles querem apenas roubar o celular? Eles estão querendo visibilidade, estão querendo ser vistos, porque são invisíveis. Estamos falando deles por causa do arrastão. Se não, não estaríamos falando deles."
Em entrevista à TV Brasil, a coordenadora executiva do Projeto Uerê, Yvonne Bezerra, que dá orientação pedagógica a jovens do Complexo da Maré, lembrou que a maioria dos jovens da periferia não comete crimes nem arrastões. "Eles ficam tentando sobreviver em uma sociedade extremamente injusta contra eles. Mas tem uma parte desses jovens que se revolta", disse ela, que aponta que falhas do Estado e das famílias levam a essa situação.
Já para o prefeito do Rio, Eduardo Paes, arrastões não são um problema social, mas de polícia. "Não vamos tratar marginais e delinquentes como problema social. Precisamos de forças de segurança impondo a ordem", disse Paes em uma entrevista coletiva convocada para falar sobre os assaltos.
Retrospectiva
No fim de semana de 22 e 23 de agosto, a Polícia Militar retirou 150 adolescentes de ônibus que seguiam em direção à zona sul e os encaminhou ao Centro Integrado de Atendimento à Criança e ao Adolescente (Ciaca), ação que foi defendida pelo governador como forma de impedir os arrastões. Segundo Pezão, o monitoramento de jovens desde o embarque nos ônibus é feito desde o ano passado.
A iniciativa sofreu críticas, e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro pediu que essas abordagens fossem suspensas, por representarem cerceamento do direito de ir e vir dos adolescentes ao detê-los sem flagrantes nem ordens judiciais. A Justiça acatou parte do pedido e as ações não foram repetidas nas semanas seguintes.
Depois dos assaltos nas praias da zona sul registrados no último fim de semana, o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, anunciou a volta das blitze, agora com a participação de outros órgãos e de assistentes sociais. Para ele, as ações são necessárias como forma de prevenção.
Em nota, o Conselho Regional de Serviço Social afirmou que o código de ética profissional da entidade proíbe que assistentes sociais participem de abordagens que tenham objetivo de cercear direitos. "Se a zona sul tem medo, o que dizer da zona norte onde assassinatos e execuções por parte de policiais fazem parte do cotidiano, como reconhecido unanimemente por entidades e organizações nacionais e internacionais de defesa de direitos humanos com ampla credibilidade?", disse a nota.