Após 15 anos, sobreviventes contam traumas de temporais em Niterói

O pintor Raphael Lacerda de Abreu foi passar apenas uma noite no estúdio de gravação de um amigo, em Niterói, para a gravação da música Outro Mundo, trabalho musical que ele assina como MC Xacal. Aquela noite, entretanto, foi a de 7 de abril de 2010, quando um temporal de proporções ainda difíceis de estimar causou um cenário de devastação na cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Fechado no estúdio, ele só descobriu no dia seguinte que a casa em que morava com o pai, a madrasta e o irmão, na comunidade São José, foi destruída pela tempestade. O melhor amigo, que morava no segundo andar, também foi vítima do desabamento. Desabrigado e sem sua família mais próxima, Raphael teve que se mudar para a casa de um amigo.
“Quando foi por volta de 9h30 da manhã seguinte, a minha prima me ligou", lembra ele. "Ela disse: ‘pelo amor de Deus, a sua casa desabou, Raphael’. Senti muito pânico na voz dela, mas não entendi nada. Ela desligou e, depois, acho que a minha tia me ligou com muito mais calma e falou: ‘Olha, Raphael, vai lá para casa, porque parece que foi um terror’. Eu já fiquei sem chão, porque estava todo mundo em casa”.
Com a ajuda de voluntários e de uma retroescavadeira, o primeiro corpo a ser encontrado foi o do pai, três dias depois do desabamento da casa em que Raphael passou a adolescência e o início da juventude. Em seguida, foram retirados dos destroços os corpos da madrasta, do irmão e do melhor amigo. Todos os quatro foram encontrados juntos.
A consequência mais devastadora daquele temporal foi o deslizamento do Morro do Bumba, que deixou 48 mortos e 200 desaparecidos, cujos corpos nunca foram encontrados. A comunidade havia sido construída sobre um antigo lixão, e a falta de sustentação do solo fez com que uma encosta com dezenas de residências fosse a baixo.
As fortes chuvas que atingiram a Região Metropolitana do Rio de Janeiro naquela semana começaram no dia 5 de abril, e continuaram a encharcar o solo até culminarem no desabamento do dia 7. Outras 25 regiões além do Morro do Bumba foram afetadas com maior gravidade na cidade, segundo o secretário municipal adjunto da Defesa Civil de Niterói, Walace Medeiros. De acordo com o coronel, na época, o município não possuía instrumentos adequados para medir o volume das chuvas, mas noticiários do período estimaram pouco mais de 300 mm em quatro dias: “Isso é um volume de chuva considerado muito alto. É mais do que o estimado para um mês”, compara.
Abrigos
Quem sobreviveu à tragédia no Bumba e em outras comunidades de Niterói passou por um período de espera para ter seu direito à moradia efetivado. Após os deslizamentos, eles foram encaminhados para dois abrigos municipais: o 4º Grupo de Companhias de Administração Militar (G-CAM), no Barreto, e o 3º Batalhão de Infantaria (3º BI), em Venda da Cruz, em São Gonçalo. Nos espaços, foram cadastrados para receber o aluguel social, um benefício no valor de R$ 400 pago pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro às vítimas.
“Tentei ir para o abrigo, mas não tinha condição. Era uma situação muito pesada. Então, quem tinha condições de ir para a casa de um amigo ou de um parente, ia. Realmente, não queria ficar no abrigo. Já estava na casa do meu amigo, então continuei”, conta Raphael.
Também vítima das chuvas, Adriana Cláudio Pereira da Silva não perdeu a casa ou familiares durante a tempestade, mas precisou abandonar o lar no Morro do Viradouro, localizado no bairro de mesmo nome, após uma vistoria da Defesa Civil, que identificou uma rachadura na residência devido à queda de uma barreira. Ela recorda que pelo menos três casas desabaram na comunidade durante a noite de chuvas mais intensas.
Diferentemente de Raphael, Adriana e a família — o companheiro e duas filhas — decidiram evacuar o local e ir para o abrigo. Primeiro, eles foram recebidos na associação de moradores da comunidade e, depois, em uma creche comunitária, de onde foram levados para o 3º BI. Lá, a família viveu provisoriamente por quatro anos.
“Quatro anos morando em um lugar provisório que era um quartel abandonado. Ficamos lá porque a Prefeitura dizia que ia nos assistir, mas era um lugar abandonado, com um banheiro coletivo. Era uma coisa horrenda, não conseguíamos dormir direito, era briga todo dia, não tinha como entrar no banheiro, não tinha como tomar banho. Era uma coisa bem precária mesmo”, lembra.
No espaço desativado cedido pelo Exército, Adriana diz que “não vivia, sobrevivia, porque era um dia pior que o outro”. A situação se tornou ainda mais complicada quando descobriu que estava grávida, dois meses após chegar ao 3º BI. “Passei esse período todo no quartel gestante e tive meu filho lá. Foi bem complicado, porque só descobri que estava grávida quando já tinha dois meses. Na época em que aconteceu tudo isso, estava tão preocupada, tão nervosa com tanta coisa acontecendo, com tanta mudança, que não percebi. Quando saímos de lá, o meu filho já estava com três anos”.
Mesmo com a precariedade do abrigo, o que manteve Adriana no 3o BI foi a promessa de ser uma das primeiras a receber um apartamento no condomínio em construção para os desabrigados e desalojados em razão das chuvas, além da impossibilidade de alugar um espaço para viver com a família, agora com cinco membros, com o valor do aluguel social, que não passou por reajuste ao longo dos anos. Somente quando a Prefeitura de Niterói anunciou que seriam pagos R$ 600 adicionais às vítimas que Adriana pôde alugar um espaço para viver até a inauguração do conjunto habitacional no Fonseca.
Conjuntos habitacionais
Cinco anos após a tragédia, em 2015, as chaves dos 374 apartamentos dos conjuntos habitacionais Zilda Arns I e II foram entregues aos moradores pelo então prefeito Rodrigo Neves (PDT), em um evento com representantes da Caixa Econômica Federal (CEF). Durante as obras, vários problemas estruturais surgiram, o que causou a demolição de um dos blocos e o atraso na finalização da construção. Nos últimos 10 anos, no entanto, os moradores do conjunto habitacional passaram a denunciar rachaduras nos prédios e problemas de falta de energia em um dos blocos.
“Tem muito problema de rachadura, mas o que reclamo daqui é a falta de comunicação da Caixa. Eles colocaram uma equipe para vigiar o solo, fazer o acompanhamento, ver se está afundando ou se está tremendo, só que nós, moradores, não temos acesso a esses laudos. A Caixa tinha que dar o direito aos moradores de ter acesso. Eu adquiri ansiedade depois das chuvas, então toda vez que chove, eu tenho crise. Queria ter o direito de saber como estão esses acompanhamentos”, protesta Adriana.
Questionada sobre os problemas no condomínio, a Caixa informou, em nota, que os Residenciais Zilda Arns I e II foram contratados por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida, a partir de Recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), junto à Construtora Imperial Serviços Ltda., responsável pela obra e pela entrega das unidades habitacionais aos beneficiários, o que ocorreu em 2016. No texto, o banco afirmou que “acompanha a situação dos empreendimentos e vem promovendo os reparos necessários para solucionar vícios construtivos deixados pela construtora responsável pelos empreendimentos, inclusive com mapeamento das trincas de todos os blocos e execução de recuperação da alvenaria estrutural”.
O banco também afirmou que contratou monitoramento técnico especializado para acompanhamento contínuo nos blocos do empreendimento, não havendo sinal de agravamento ou risco estrutural até o momento, e acrescentou que problemas relacionados à ausência de manutenções preventivas são responsabilidade exclusiva dos condomínios constituídos. Ainda, a CEF esclarece que “a Construtora Imperial Serviços Ltda. e seus sócios estão impedidos de operar em novos projetos com o banco”.
Com relação ao aluguel social, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEASDH) informou à Agência Brasil que prevê reajuste dos valores do benefício e explicou que tem em seu escopo de planejamento e gestão de 2025 a revisão do recurso em função dos índices inflacionários. A pasta ressaltou que os valores são definidos de acordo com os decretos publicados em cada situação específica de calamidade ou emergência, englobando municípios com realidades de mercado de imóveis diferentes.
Prevenção
Professor do Departamento de Geologia e Geofísica da Universidade Federal Fluminense (UFF), André Luiz Ferrari afirma que, em algumas encostas, “o melhor que se faz é não ocupar”.
“O que deveria ter sido feito é ter retirado a população dali [Morro do Bumba], buscado uma área que fosse razoável para aquelas pessoas que já estavam ali há muitos anos e ter construído moradias adequadas. Depois dessa tragédia no Bumba, se fez algumas obras de contenção das encostas. Hoje, tem um parque lá, recuaram a encosta, diminuíram a declividade e tiraram o material do lixão, mas isso deveria ter sido feito quando se parou de jogar lixo ali. Isso que teria impedido essa tragédia”.
Segundo a professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFF, Regina Bienenstein, um dos principais impactos de tragédias como essas é a constante sensação de risco, que leva moradores ao estado de alerta a cada vez que chove.
“Você pode perguntar: por que eles não saem? Eles não saem porque não tem alternativa, então ou eles moram ali, ou moram na rua, e onde é menos perigoso? Hoje, eu não sei”, avalia a pesquisadora.
O Censo de 2022 mostra que Niterói concentra 15,73% (36.304) dos domicílios em favelas e comunidades urbanas. Ao todo, 86.983 pessoas residem em favelas na cidade, representando 18,06% da população total. A maioria se identifica como negra (73,26%), sendo 47,72% autodeclarada parda e 25,54% preta.
No Indicador de Capacidade Municipal (ICM), do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Social (MIDR), Niterói surge entre os 1.972 municípios mais suscetíveis a ocorrências de deslizamentos, enxurradas e inundações a serem priorizados nas ações do Governo Federal de gestão de risco e de desastres. Com base em dados coletados de 1991 a 2022, a cidade possui 33.822 pessoas em áreas mapeadas como de risco geo-hidrológico, cerca de 7% da população total do município (481.758).
Para Bienenstein, Niterói carece de uma política de garantia de moradia a todas as parcelas da população, especialmente a mais vulnerabilizada. “Niterói precisa olhar para essa cidade popular, porque o Executivo municipal hoje não olha. Quando olha, é para fazer intervenções pontuais, que não garantem o direito à habitação, como a Constituição considera. A Constituição considera que o direito à moradia não é somente o direito a uma casa, mas também à acessibilidade, à mobilidade, a serviços, à infraestrutura e a não ter riscos”, defende.
Investimentos municipais
A Prefeitura de Niterói afirma que tem investido em melhorias de infraestrutura nas comunidades da cidade desde 2013. Nesse período, mais de R$ 1,5 bilhão foi empregado em obras de drenagem, pavimentação e contenção de encostas em todas as regiões do município. Conforme a Prefeitura, “as ações acontecem de acordo com um trabalho criterioso de análise que segue o Plano de Gerenciamento e Prevenção de Riscos. Essas obras são essenciais para prevenir ocorrências graves em casos de chuva extrema”.
A pasta também informou que, desde 2013, a Defesa Civil de Niterói foi estruturada e realiza o monitoramento constante da cidade com sistema de alerta e alarme por 37 sirenes instaladas em locais estratégicos de 33 comunidades e 46 pluviômetros automáticos. Como uma das estratégias de resiliência, também foram criados 153 Núcleos de Defesa Civil (Nudecs) em diversas localidades, que contam com a participação de cerca de 3,4 mil voluntários para apoiar as ações emergenciais.
Em caso de necessidade de evacuação das casas, a Prefeitura expressou que existe um planejamento e mapeamento de rotas de fuga com um ponto de apoio estabelecido para receber os moradores e acrescentou que, em 2024, foi instalado um novo radar meteorológico que permite maior previsibilidade e acompanhamento das tempestades, além de possibilitar estudos de mitigação de riscos e demais projetos voltados ao aumento da proteção do cidadão e da capacidade de resiliência do município.
“A Secretaria de Defesa Civil, Resiliência e Clima está implementando ainda um pacote de ações que aliam a experiência e técnica dos seus agentes com a captação de imagens de drones e satélites, mapas georreferenciados, sensores e robôs. As ações tecnológicas estão dentre os planos de tornar a cidade mais resiliente e envolver cada vez mais os moradores para minimizar os impactos das mudanças climáticas, como incêndios em vegetação e tempestades severas”, complementou.
Para o pintor Raphael Lacerda de Abreu, a falta de prevenção foi a grande falha da cidade na época do desastre. “Sempre pagamos tudo do terreno, IPTU, água, luz. Será que eles não conseguiriam fazer um levantamento dizendo que ali seria impróprio (para moradia)? Até no próprio Bumba, deixaram construir em cima de um lixão. Você sabe que vai dar ruim, que em algum momento vai ter problema”, continua.
“As pessoas se foram. O apagamento existe para quem não perdeu nada, sabe? Para mim, que perdi e perdi muito, não existe. Foram quatro pessoas, três da família, então, não existe apagamento”
Para o presidente da Associação de Vítimas do Morro do Bumba, Francisco Carlos Ferreira de Souza, se não fosse a participação de voluntários da cidade e de outros municípios, como São Gonçalo, o resgate das vítimas teria sido muito mais difícil. “Se não fosse a solidariedade das pessoas, não só daqui de Niterói, como também de outros estados, até chegarem o Estado ou o Município, demoraria muito”.
*estagiária sob a supervisão de Gilberto Costa.




