Latinidades debate literatura, produção audiovisual e estética da periferia
Quando a escritora cubana Teresa Cárdenas aprendeu a ler, começou a buscar personagens parecidos com ela nos livros infantis. Ela conta que as protagonistas eram todas loiras, de olhos claros, e tinham cabelos que "se moviam com o vento". Sem sucesso, para se ver representada e representar outras tantas crianças negras, Teresa hoje escreve essas histórias e é reconhecida como uma das maiores vozes da literatura infanto-juvenil. "Não sou a única autora negra que escreve para crianças negras, mas quase. Em Cuba há outras duas mulheres e poucos homens".
Teresa, que é autora de Cartas Para a Minha Mãe e Cachorro Velho, foi uma das participantes dos debates da tarde de hoje (24) no Festival Latinidades. "Um dos meus objetivos é que as meninas e jovens negras se sintam acompanhadas com os livros. Eu não escrevo sobre negros, escrevo sobre família, sobre sentimentos, sobre angústia, dor, sexo. Sou tida como uma autora de temas difíceis para crianças, como a morte, a vida, a violência, a imigração, partidas, encontros e desencontros."
A escritora reforça que ver-se representada é importante para a construção da autoestima. "Lembro que, um dia, eu disse para minha mãe que era bonita. Ela me abraçou e disse: 'eu te amo'. Não era a resposta que eu queria. Mas depois eu entendi que ela também sofria [com a discriminação]."
A dificuldade em encontrar livros escritos por mulheres negras e que tenham personagens negros não se restringe a Cuba. Segundo professora de literatura brasileira da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Fernanda Felisberto, é difícil encontrar essas obras no mercado, e até mesmo identificá-las, pois geralmente circulam sem a foto da autora e as sinopses mascaram o conteúdo.
Fernanda é doutora em literatura comparada e pesquisadora das narrativas negro-diaspóritas. Para o doutorado, e para compor o acervo da Livraria Kitabu, da qual é sócia, Fernanda encontrou, em 2010, apenas oito autoras negras na América Latina com obras traduzidas para o português. E as obras de cinco delas não estavam mais disponíveis nas editoras. "A questão de gênero está em pauta, mas nem assim essa narrativa é atraída para o mercado editoral, para que se possa ganhar dinheiro conosco. Por isso, é importante o fortalecimento das editoras alternativas, para que esses textos possam chegar até aqui."
Representação na imagem
Outra questão tratada na tarde de hoje foi a estética da periferia. "Hoje, vejo a periferia como o novo centro cultural, de onde aflora a cultura popular do Brasil. Acredito que é nas periferias que aflora tudo que a gente tem visto, o passinho, o tecnobrega, o queer rap", disse Rico Dalasam, conhecido por inaugurar a cena queer do rap no Brasil, ao unir o rap ao orgulho LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros].
Dalasam define-se como negro, gay, cabeleireiro, produtor de audiovisual e rapper. "A forma como me apresento é diferente da forma como retratam a periferia: a garota grávida aos 13 anos, o cara que vai para o crime, sem dizer que isso é mentir, mas existem outras realidades, e eu sou uma delas, alterando o que está imposto."
Dalasam defende uma representação da periferia pela própria periferia e diz que os clipes que produz servem de estímulo para outros jovens. "Tenho um escritório onde eu toco as minhas coisas. A visão é monetizar o problema. Ser pobre é problema, ser gay é problema? Quando transformamos algo que nos oprime em outro produto em benefício nosso, conseguimos transformar quem está perto de nós, a nossa família, a nossa condição de vida."
O rapper disponibilizou as faixas do primeiro EP Modo Diverso no Youtube. Algumas já têm mais de 14 mil visualizações.
O Latinidades, criado em 2008 para comemorar o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, dia 25 de julho, é o maior festival de mulheres negras da América Latina. O evento vai até domingo (26), no Cine Brasília. A programação, que inclui palestras, exibições de filmes e shows, está disponível no site www.afrolatinas.com.br.