Fichário dos Artistas tem 429 pessoas investigadas pelo Dops em Pernambuco
Dos registros policiais às páginas da história brasileira. Por meio do projeto Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, a investigação feita pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), durante os anos de 1934 a 1958 em Pernambuco, se transformou em um inventário cultural e histórico de 429 artistas que moraram ou passaram pelo estado na época.
Lançado na semana passada no Recife, o Obscuro Fichário está disponível na internet e contém vasta documentação das pessoas do meio artístico que foram selecionadas pelo Dops, durante a presidência de Getúlio Vargas, para serem apenas registradas, seguidas e investigadas pelo departamento de vigilância.
Os arquivos, armazenados pelo Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (Apeje), são considerados pela idealizadora e coordenadora do projeto, a jornalista Clarice Hoffmann, como indícios de uma época de grandes transformações artísticas, políticas e culturais ocorridas no Brasil e especialmente na cidade do Recife nas décadas de 1930, 40 e 50. “A gente usa como ponto de partida a documentação para contar uma história, ou para contar a história do país de uma maneira contundente e poética”, avalia.
A equipe do projeto catalogou 403 pessoas fichadas pelo Dops, entre pernambucanos, brasileiros, estrangeiros, homens e mulheres, atores, músicos, escritores, circenses e ainda uma variedade de trabalhadores considerados fora das atividades “normais” remuneradas. A partir desses registros policiais, os pesquisadores levantaram informações em jornais, instituições históricas e outros meios de informação para tentar reconstruir um pouco da história de cada uma das pessoas.
A história de Clarice com o Obscuro Fichário começa em 2004, quando ela foi contratada para fazer uma pesquisa iconográfica para um livro. Sua missão era acessar os arquivos do Dops para tentar encontrar vestígios de uma personagem. Mas, à época, o arquivo ainda estava em organização, e os prontuários individuais só poderiam ser consultados pelos próprios prontuariados, por familiares ou pessoas autorizadas.
“Mas eu comentei com a pessoa que estava à frente desse fundo que minha avó havia sido fichada - cresci ouvindo falar nisso - na ditadura de Getúlio Vargas porque era atriz. Ela falou: 'ah, será que ela não passou por aqui?' Aí falei que não, que ela era mais do Rio-São Paulo. Aí ela disse: 'deixa eu trazer uma coisa para você'. E trouxe para mim um pequeno arquivo com duas gavetas e foi a primeira vez que eu fiz a ficha dos artistas”, lembra.
O projeto nasce, assim, como uma “homenagem” à avó da jornalista, nas suas palavras. Ela diz também que ficou impressionada com o material, principalmente as imagens dos artistas. Todas as fichas tinham fotos 3x4. “Mas a ideia ficou guardada até 2014, quando finalmente iniciou o trabalho. “Eu precisei esperar quase 10 anos para fazer o projeto, porque precisei que a legislação permitisse isso”.
Os nomes encontrados no fichário vão das letras M à Z. A outra parte, de A a L, foram perdidas em algum momento que Clarice não conseguiu identificar, mas a estimativa é que o fichário era composto originalmente por 1.100 verbetes. Para saber mais sobre os artistas “perdidos”, os pesquisadores também estudaram cerca de 12 mil prontuários individuais produzidos pelo departamento pernambucano entre no período do fichário. O que resultou, junto com os já conhecidos nas fichas, em 429 personagens de artes as mais diversas.
Ao fim da pesquisa, em muitos casos foi possível reunir exemplos da arte dessas pessoas, recortes de jornais, relatos da vida do artista, links para registros históricos de outras instituições. Em outros, restou apenas a ficha policial e a foto 3x4.
Um Recife extra-oficial
Outro resultado do projeto foi a catalogação de locais e eventos espionados pela delegacia. Um mapa com 150 endereços frequentados pelos artistas investigados foi disponibilizado no site. Os três artigos de acadêmicos publicados na página do projeto também contribuem para entender o que essas pessoas significavam em meio ao contexto político, cultural e social de Pernambuco à época. Possuidor de um importante porto, Recife recebia visitantes de várias partes do mundo, e ganhava rápidos ares de modernidade e ideias de diferentes nacionalidade, também no contexto da Segunda Guerra Mundial que gerou migrações extensas.
Um dos artigos é do historiador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRG) Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Autor de sete livros e estudioso da identidade e transformações do Nordeste, o acadêmico fala sobre as diversas possibilidades criadas com a descoberta e investigação feita pelo projeto.
Entre elas, a descoberta de um Recife e de uma história escondidos da narrativa oficial, de pessoas eternizadas nas fichas mas quase ou totalmente invizibilizadas no decorrer do tempo. “Esses breves relatos sobre o que chamamos de artistas ‘mundanos’, mantidos na obscuridade de um fichário, e os espaços da cidade que neles são descritos, constituem a possibilidade de se desenhar outras geografias, outros mapas, outras cartografias possíveis para essa cidade”, escreve o historiador.
Para descobrir essa nova cidade, foi lançada também uma cartografia de locais e eventos frequentados por esses artistas, e que foram alvo, também, da investigação da polícia política de Getúlio Vargas. O historiador chama a atenção para espaços destinados a espetáculo, cassinos, cabaré, circos e cinemas, além de cafés, restaurantes e hoteis onde se desenrolava a vida boêmia da cidade.
Instituições que produziam ou fomentavam a arte e que tiveram importância no período registrado podem ser encontradas na cartografia. Desde companhias cinematográficas a jornais, estações de rádio e associações de artistas que tiveram algum significado no processo histórico efervecente do Recife da época.
Foi possível observar ainda, segundo Durval, quais eram as ideias consideradas ameaçadoras para o estado brasileiro e a elite política, econômica e intelecutal desses tempos. Mulheres que não eram devotadas ao trabalho doméstico ou ao papel de mães e esposas, por exemplo. O que era considerado “anormal”, fora dos padrões sociais, também tinha espaço nas fichas policiais.
“O mundo artístico estava povoado de corpos e seres estranhos: corpos de raças e grupos étnicos considerados inferiores, minoritários ou degenerativos, de personalidades bizarras e estranhas fazendo atividades ligadas aos mundos obscuros e suspeitos da magia, do curandeirismo, das artes divinatórias, da cartomancia, da quiromancia, das religiões e cultos populares e não obedientes a ortodoxia da Igreja Católica”, disse.
Para a jornalista Clarice Hoffmann, revelar essas histórias é construir outra memória , diferente da estebelecida por, segundo ela, “grupos políticos que se mantiveram e se mantém por anos”. A história de gente que deu alegria, prazer e questinou a realidade. “A história do povo, da resistência do povo, dos resistentes”, resume.