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Educação

Pioneira no debate, USP é última das grandes universidades a adotar cota racial

A elitização da instituição, assim como a pouca participação de alunos
Bruno Bocchini - Repórter da Agência Brasil
Publicado em 06/08/2017 - 14:45
São Paulo
São Paulo - Ato organizado pela Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, o machismo, o genocídio e a lesbofobia, na Praça Roosevelt, região central da capital paulista (Rovena Rosa/Agência Brasil)
© Rovena Rosa/Agência Brasil

Apesar de ter sido o berço do debate sobre a implantação de cotas raciais no Brasil, a Universidade de São Paulo (USP) foi a última das grandes universidades públicas do país a aderir à reserva de vagas a pretos, pardos e indígenas (PPI). Quinze anos depois de o estado do Rio de Janeiro adotar as cotas raciais em suas universidades estaduais, a USP decidiu implantar, a partir de 2018, um sistema similar ao estipulado pela Lei de Cotas Para o Ensino Superior, que já está em vigor nas universidades federais desde 2013.

A elitização da instituição, assim como a pouca participação de alunos, funcionários e de parte do corpo docente nas grandes decisões da universidade é apontada pela professora do departamento de sociologia da USP Márcia Lima como razão para a demora na adoção da reserva de vagas para o grupo PPI.

“A USP resistiu porque sempre foi altamente elitizada e nada democrática nas suas esferas decisórias. O Conselho Universitário [instância máxima da universidade] é composto por 115 pessoas, com baixa representação discente, dos funcionários e dos professores doutores”, avalia.

O Conselho Universitário da USP aprovou no início de julho que, a partir do próximo ano, serão reservadas 37% das vagas de cada unidade de ensino e pesquisa para alunos egressos de escolas públicas; em 2019, a porcentagem deverá ser de 40% de vagas reservadas em cada curso de graduação; para 2020, a reserva das vagas deverá ser de 45% em cada curso e turno de aulas; e no ingresso de 2021 e anos subsequentes, o índice passará a 50% por curso e turno.

Dentro do percentual de vagas reservadas para os estudantes oriundos de escolas públicas é que incidirá o percentual de 37% de cotas para estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI). Este índice equivale à proporção desses grupos no estado de São Paulo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A decisão do Conselho Universitário da USP ocorreu dias depois de a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aprovar a implementação das cotas étnico-raciais para ingresso em seus cursos de graduação a partir de 2019. A Universidade Estadual Paulista (Unesp) já adota a reserva de vagas raciais desde 2015.

Na avaliação da professora Márcia Lima, ser a única instituição a não ter cotas raciais aliada à pressão política dos movimentos negros foram decisivos para a mudança.

“A USP estava ficando isolada neste processo de inclusão. O debate ocorrido na Unicamp e a decisão daquele Conselho Universitário [da Unicamp], na minha opinião, foram muito importantes. Mas é preciso ressaltar que há um movimento de décadas dentro da USP demandando políticas de inclusão racial. Ou seja, há um conjunto de fatores que levaram a isto: movimento negro, movimento estudantil, adoção das cotas pelas outras estaduais paulistas”.

Movimento negro

Para o movimento negro na universidade, encabeçado principalmente pelo Núcleo de Consciência Negra na USP (NCN), a adoção da reserva de vagas com critério racial foi uma vitória. No entanto, o projeto aprovado pelo Conselho Universitário da USP foi aquém do esperado, com porcentagens baixas de cotas. No próximo vestibular, por exemplo, do total de vagas, apenas 13,7% serão reservadas para o grupo PPI, distante da proporção do grupo no estado de São Paulo, acima de 37%.

“A gente enxerga como vitória, porque essa é uma pauta histórica para nós, e a USP era uma das poucas do Brasil a não ter. As federais todas já têm cotas. São poucas as estaduais que não têm. Quando você olha para os números, são muito baixos, mas a gente enxerga, mesmo assim, como vitória”, destaca Thatiane Lima, do NCN, e estudante de Engenharia de Materiais da Escola Politécnica da USP. “O que foi aprovado é similar à lei federal. A USP levou cinco anos para adotar o mesmo que a lei federal. Então, poderia ter feito há muito tempo.”

O projeto do movimento negro pretendia a implementação da reserva de vagas para o grupo PPI não atrelada às cotas para alunos egressos da escola pública. Defendia que as cotas raciais fossem calculadas sobre o percentual do total de vagas que a universidade oferece, e não apenas sobre a cota para estudantes que cursaram o ensino médio nas escolas públicas.

“É muito diferente [o projeto aprovado em relação ao do movimento negro]. O movimento negro sempre fala de cotas raciais descoladas das sociais, enquanto reparação histórica, para assumir mesmo que existe o racismo. Esse projeto que passou não tem isso. O nosso projeto falava do vestibular diferenciado para indígenas, esse projeto não fala. O nosso projeto falava de pessoas com deficiência, e esse projeto não fala. O nosso projeto era muito mais completo mesmo”, ressalta Thatiane.

Antes de aceitar as cotas raciais, a USP aplicou diversas políticas para tentar aumentar a participação dos estudantes vindos de escolas públicas na instituição. Diferentemente da reserva de vagas, a instituição concedia bônus – acréscimos nas notas do vestibular – para estudantes egressos do sistema público e, mais recentemente, para o grupo PPI. Essas políticas fizeram com que o número de alunos vindos do ensino público na USP subisse de 24,7%, em 2006, para 35,7% em 2017. No entanto, resultaram em mudanças muito tímidas em termos de diversidade étnico-racial. No estado de São Paulo, o grupo PPI representa cerca de 37% da população. E na USP, atualmente, apenas cerca de 16% dos alunos se declaram pretos, pardos ou indígenas.

Disputa política

Apesar de ter sido aprovada pelo Conselho Universitário, a reserva de vagas com recorte racial não era a proposta sugerida pela instituição. Dias antes da votação, em julho, a própria universidade propôs no Conselho de Graduação, que cuida de temas relacionados aos cursos de graduação, uma proposta de cotas, mas apenas com cunho social, focando nos alunos que cursaram o ensino médio no sistema público, descartando o caráter racial. O movimento negro apresentou também sua proposta, no mesmo conselho. No entanto, o projeto escolhido foi o sugerido pela própria USP, que não contemplava o recorte racial.

A decisão do Conselho de Graduação, que ainda precisava ser aprovado pelo Conselho Universitário, mobilizou alunos, professores e o movimento negro na universidade. Pedindo as cotas raciais, um abaixo-assinado com a participação de centenas de professores ganhou destaque.

Na véspera da votação na instância máxima, membros do Conselho Universitário favoráveis à reserva de vagas para o grupo PPI reuniram-se para desenhar uma estratégia, na tentativa de reverter a decisão do Conselho de Graduação. Na sessão decisiva, a maioria das falas foi favorável às cotas raciais. O projeto da universidade então foi emendado, com a inclusão da reserva de vagas para o grupo PPI, e aprovado.

“Ter passado foi uma vitória do movimento, porque não era o que a USP queria. A universidade queria só alunos de escola pública. As cotas raciais entraram porque teve uma pressão para isso acontecesse. Mas essa não foi a proposta que a USP apresentou em nenhum momento”, destaca Thatiane.

Para o historiador e militante da Uneafro Brasil, Douglas Belchior, o sucesso da mobilização pró-cotas raciais dentro da USP é reflexo do fortalecimento dos coletivos negros nos últimos anos que têm conseguido criar lideranças políticas dentro das universidades públicas do país.

“É resultado da pressão dos movimentos negros e aumento das lideranças negras dentro da universidade. A presença negra nas universidades aumentou em quantidade, apesar de a universidade brasileira continuar sendo branca. Há um aumento quantitativo, mas um gigantesco aumento qualitativo, do ponto de vista da intervenção política desses coletivos negros, o que fortaleceu muito as iniciativas negras que sempre existiram.”

Segundo Belchior, a aprovação das cotas raciais na USP significa uma ruptura, pequena, mas que pode servir de ponto de apoio para uma maior organização do movimento negro. “As cotas raciais são uma política liberal, uma política de resto do farelo da mesa. Do ponto de vista da reparação histórica que o movimento cobra, é pouquíssimo ou quase nada essa pequena fissura na parede, esse arranhão, que é isso que ele causa. Elas [as cotas raciais] não redistribuem renda necessariamente, não fazem revolução. Mas ela propõe uma pequena alteração, que organiza os negros a partir da sua percepção da luta por direitos do ponto de vista estrutural da sociedade.”

Para o historiador, no entanto, a luta dos movimentos negros dentro da USP é uma das mais difíceis. A universidade precursora do debate de cotas raciais foi uma das últimas a aceitar sua implantação.

“A USP é um espaço de formulação de endossos, daquilo que se constituiu de maneira hierárquica e desigual no Brasil, sobretudo do ponto de vista da alocação racial, do lugar naturalizado dos filhos dos imigrantes das elites europeias em detrimento daqueles que são descendentes dos escravos. A USP sempre foi esse lugar de reafirmação da alocação de cada segmento social no seu lugar predeterminado. E a sua produção acadêmica nunca esteve a serviço do questionamento dessa lógica”, destaca.

Cota para professores

Se a quantidade de alunos da USP do grupo PPI é de cerca de 16%, a de professores é ainda menor. De acordo com a pesquisadora Viviane Angélica Silva, que se doutorou na USP com a tese Cores da Tradição: Uma História do Debate Racial na USP e a Configuração Racial do seu Corpo Docente, a presença de negros entre os professore é ínfima. Dados de 2015 mostram que 94,6% dos professores ativos eram brancos; 0,3%, pretos; e 1,53%, pardos.

“Os dados referentes à configuração racial do corpo docente da USP que eu trouxe em minha pesquisa revelaram um crônico monocratismo branco da instituição, que precisa ser interpelado. A USP, apesar de formar um pequeno, porém importante conjunto de intelectuais negros, ainda não absorve este ínfimo contingente em seu quadro de professores.”

Para ela, a mudança desse cenário só se dará com um sistema de reserva de vagas para professores negros. “A presença negra só se fará efetiva no corpo docente na USP após um intenso processo de mobilização política por cotas raciais também na docência, a exemplo do que acontece em alguns concursos públicos. Senão, veremos a reprodução de uma história de ingresso de negros a conta-gotas na docência desta instituição.”

A USP foi procurada pela reportagem da Agência Brasil para se posicionar sobre o tema, mas não quis se manifestar. No início do mês de julho, quando da aprovação das cotas, o reitor da USP, Marco Antonio Zago, classificou a decisão do Conselho Universitário como histórica. “É emblemático, porque representa uma universidade que tem liderança e muita visibilidade no país. A inclusão social é um problema importante do ponto de vista de integração de nossa população”, disse.