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Não é fácil escrever sobre Jane Karla Gögel. A possibilidade de ela ter quebrado um novo recorde mundial enquanto essas linhas são digitadas é real. Brincadeira à parte, a fase que vive a goiana de 44 anos é excepcional. No último sábado (18), em Nimes (França), ela estabeleceu pela terceira vez consecutiva a melhor marca do mundo no tiro com arco paralímpico em disputas indoor (ambientes fechados). Desta vez, fez 582 de 600 pontos possíveis durante a fase classificatória. Das 60 flechas atiradas, 42 foram certeiras, valendo 10 pontos cada, e 18 próximas ao centro do alvo, cada uma valendo 9 pontos.
Vale destacar que o torneio na França não era exclusivo para atletas paralímpicos, como também não eram as competições em Luxemburgo e Roma (na Itália), onde havia quebrado o recorde mundial anteriormente. Na França, enfrentando atiradores sem deficiência, Jane Karla chegou em nono lugar, caindo nas oitavas de final. O detalhe é que essa sequência de campeonatos é “apenas” parte do treinamento de olho nos Jogos de Tóquio, no Japão. Isso porque nas Paralimpíadas as provas de tiro com arco são outdoor (ou seja, sujeitas a condições climáticas que podem ser adversas, como chuva ou vento).
“É bom [competir no indoor] porque você consegue trabalhar bastante a técnica, já que não tem tanta variação. É muita precisão. Para estar entre os melhores, tem que estar sempre acertando a mosquinha, que é como eu chamo o X [alvo principal]. Então dá para trabalhar mais a técnica e entender o que se está errando”, explicou em entrevista à TV Brasil após a segunda quebra de recorde, em Roma.
Jane Karla teve poliomielite na infância, o que comprometeu o equilíbrio do corpo para andar e afetou a força de pernas e braços. O esporte entrou em sua vida em 2003, aos 28 anos. Mas com raquete e bolinha, ao invés de arco e flecha. Não demorou para ela, natural de Aparecida de Goiânia (GO), conquistar as primeiras convocações para a seleção brasileira de tênis de mesa na classe 8 (atletas andantes) e os primeiros títulos. Quatro anos depois, no Rio de Janeiro, veio o primeiro de seus dois ouros na modalidade em Jogos Parapan-Americanos. Em 2008, a estreia paralímpica, nos Jogos de Pequim, na China.
Em 2009, a goiana encarou o adversário mais difícil da vida, um câncer de mama, diagnosticado meses após sua mãe ter descoberto a mesma doença. Elas passaram juntas pelo tratamento e, mesmo diante dos efeitos colaterais, Jane Karla não deixou o tênis de mesa. Segundo a goiana, isso foi fundamental para enfrentar o processo. Dois anos depois vieram a cura e o bicampeonato do Parapan, em Guadalajara, no México. Em 2012 o falecimento da mãe (o câncer teve metástase no cérebro) foi um baque, mas a brasileira teve brio para disputar a Paralimpíada de Londres, no Reino Unido, e alcançar o quinto lugar.
Brio também para mudar radicalmente de carreira esportiva após 2014, quando a Confederação Brasileira de Tênis de Mesa (CBTM) passou a trabalhar com a seleção paralímpica de andantes em São Paulo. Jane teria que deixar a família, com quem morava em Goiás. Ela decidiu ficar, mas ter que arcar sozinha com as despesas de campeonato e material, além das dores que sempre sentiu por treinar e competir em pé, fizeram-na trocar de modalidade. Gostou da esgrima, mas foi no tiro com arco que a goiana se descobriu. Até o marido, o alemão Joachim Gögel, técnico de tênis de mesa, aderiu à nova prática da esposa.
O sucesso foi imediato. Em 2015 veio o terceiro ouro parapan-americano, o primeiro na nova modalidade. Em 2016, na terceira Paralimpíada da carreira, chegou às quartas de final do tiro com arco, caindo só diante da chinesa Yueshan Lin, que levou a prata no Rio. Já em 2018, após vencer torneios em Dubai (Emirados Árabes) e Ólbia (Itália), assumiu a liderança do ranking do arco composto paralímpico. E no ano passado o sexto lugar no Mundial disputado em Den Bosch (Holanda) garantiu ao Brasil vaga nos Jogos de Tóquio. Vaga que, evidente, só uma hecatombe tira de Jane Karla.
Vencedora do Prêmio Paralímpicos no tiro com arco pela terceira vez em cinco anos, a brasileira é esperança de pódio no Japão, podendo até ter a companhia da filha em Tóquio. Lethícia Lacerda, 16 anos, tem uma doença genética que causa dores nas articulações e compromete a mobilidade. Ela está na briga por uma das vagas paralímpicas na modalidade em que a mãe iniciou no esporte. Em 2019, Lethícia foi a caçula da seleção de tênis de mesa no Parapan de Lima, no Peru, e conquistou o bronze, completando o pódio 100% brasileiro das classes 8-10, com Danielle Rauen (ouro) e Jennyfer Parinos (prata). Parece que está no sangue.
Jane Karla tem o sorriso fácil. Para deixá-lo ainda mais animado, quem sabe a primeira medalha paralímpica da carreira. E dá para duvidar?
Veja matéria com Jane Karla na TV Brasil: