Comunidades relatam em Belo Horizonte violação do direito à moradia
Rosane Cristina Duarte, 42, tinha 2 anos quando foi morar com a família no bairro Betânia, região oeste de Belo Horizonte, cidade que recebe, nesta semana, o Encontro dos Atingidos – Quem Perde com os Megaeventos e Megaempreendimentos. Com o tempo, o terreno dos pais ganhou instalações e até outras casas, que abrigaram as famílias que ela e o irmão formaram. Hoje, não há mais registro do que eles construíram ali. O local foi ocupado pelo gramado e pelo asfalto da longa pista construída recentemente. A família de Rosane foi uma das 240 desapropriadas da Rua Lótus para a construção da Via 2010, um dos projetos de mobilidade urbana criados em Minas Gerais para a Copa do Mundo de 2014.
Para a remoção das famílias, a prefeitura da cidade, por meio da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), enviou peritos que avaliaram os valores dos imóveis. A quantia baixa não agradou, e os moradores conseguiram que nova avaliação fosse feita. Mesmo assim, a questão não foi resolvida: “Fizemos várias reuniões com a Defensoria Pública, que informou que a lei diz que você tem que sair com o dinheiro em mãos. A indenização tem que ser justa, breve e em dinheiro, mas não foi o que ocorreu lá”, relata. De acordo com Rosane, nenhuma das famílias saiu com a chave da nova moradia garantida: “Se a gente pudesse escolher, não queria sair. Mas, já que não tinha jeito, nós queríamos sair com o dinheiro para a gente comprar outro lugar”.
As famílias que viviam na Lótus foram surpreendidas com a chegada de oficiais de Justiça, que davam o prazo de poucas horas para que elas retirassem os pertences das casas e desocupassem o imóvel. “Eles chegavam lá sem avisar, sem nada. Teve gente que precisou pôr tudo na rua porque não tinha para onde ir. E quando tirava o último móvel de dentro do imóvel, a máquina colocava tudo no chão”, lembra Rosane. A abordagem gerou ação do Ministério Público Federal em Minas Gerais que, em maio do ano passado, encaminhou uma recomendação à prefeitura de Belo Horizonte pedindo que as remoções fossem suspensas devido às irregularidades constatadas à época.
O projeto, no entanto, não parou. Com as remoções, muitos moradores buscaram casas de parentes como refúgio. Outros, como ela, passaram a pagar aluguel. Pela casa pequena localizada dentro de outra residência, no bairro Barreiro, ela paga, há quase um ano, R$ 550 mensais. O prejuízo não parou aí. Com a mudança, Rosane perdeu o emprego de babá: “Eu cuidava de duas crianças filhas de amigas, mas cada uma foi morar em um bairro diferente. Como é que eu vou arrumar um emprego de babá se ninguém me conhece aqui? Eu fiquei desempregada”.
Ela também se afastou dos amigos da vizinhança, passou a morar, assim como o pai e o irmão, em um bairro diferente, viu os sobrinhos terem que mudar de escola. “Não precisava. No lado onde estavam as nossas casas, só tem grama. Não foi utilizado para nada”. Para ela, a Copa do Mundo de 2014 significou a paralisação da própria vida. Três anos depois de muita angústia, Rosane ainda aguarda a liberação dos R$ 110 mil que deve receber como indenização para comprar um imóvel, que ainda não sabe onde será.
No caminho para o local em que passou boa parte da vida, já no bairro Betânia, vimos um apartamento à venda. R$ 195 mil é o valor para a compra do imóvel de 48 metros quadrados (m²). “Eu vou ter que financiar e me endividar, porque aqui não se acha nada nesse valor [da indenização]”, diz Rosane, que continua fazendo compras, pagando contas e caminhando no bairro onde viveu por décadas.
A Via 210 é um dos sete projetos de mobilidade urbana que constam na Matriz de Responsabilidade da Copa, em relação ao estado de Minas Gerais. Além da via, foram projetadas a instalação de três BRTs (Bus Rapid Transit), duas ampliações de avenidas e a expansão da Central de Controle do Trânsito. A equipe da Agência Brasil entrou em contato com a Sudecap, em Belo Horizonte, mas foi informada de que, por causa do feriado do Dia do Trabalho, as ações da secretaria só devem ser retomadas na próxima segunda-feira (5).
De acordo com o Portal da Transparência, o projeto custou R$ 130,3 milhões, recursos de responsabilidade do governo de Minas Gerais e da prefeitura de Belo Horizonte, financiados pela Caixa Econômica Federal (CEF). Para as desapropriações, que ocorreram entre maio de 2010 e dezembro de 2013, foram destinados R$ 22,8 milhões desse total.
O projeto teve o objetivo de conectar “duas vias arteriais de grande capacidade e abrangência metropolitana (Via do Minério e Avenida Teresa Cristina), que hoje são ligadas por meio do sistema local dos bairros adjacentes, o que compromete a fluidez do tráfego de veículos naquela região do Anel Rodoviário”, conforme consta no Portal da Transparência. Outra intervenção prevista para essa área do Anel Rodoviário é um projeto de ampliação e modernização, em volta do qual existe, desde 1981, a comunidade Vila da Paz, considerada pela Defensoria Pública “a que está na situação de maior risco e que convive com maior insalubridade, em todo o anel”, de acordo com o defensor público federal Estevão Ferreira Couto. Ele diz que a intervenção foi anunciada inicialmente como parte dos projetos da Copa, mas os atrasos na obra inviabilizaram a conclusão a tempo do Mundial.
A equipe da Agência Brasil visitou a Vila da Paz e viu a situação de extrema pobreza em que vivem as famílias, que se distribuem entre áreas elevadas e a que fica debaixo de um viaduto. Não há saneamento básico no local. As instalações que garantem água e luz elétrica – inexistentes em muitas das casas – foram improvisadas pelos próprios moradores. Ao contrário dos que moravam no bairro Betânia, os da Vila da Paz querem sair da área há anos, mas ficaram ali, em meio aos carros, insetos e animais com os quais dividem espaço.
O concreto do viaduto é o teto da casa de Gleide Parecida, 39. Ela, o marido, quatro filhos e dois cachorros vivem entre paredes feitas de pneus e sacos de grãos de areia que escorrem de um dos pilares que sustentam o viaduto. “Eu quero sair daqui, quero segurança, porque há 15 anos eu não durmo, eu só cochilo de tanto medo”, relata. “A situação aqui todo mundo sabe qual é, estamos cansados de fazer cadastros, nós queremos outro lugar para morar”, afirma Luciene Martins, 32.
A insalubridade do local coloca em risco a vida de centenas de pessoas, todos os dias. Nos últimos anos, incêndios destruíram algumas das moradias, levando famílias a locais mais íngremes e sem estrutura alguma. É o caso de Cassimara Pereira, 25, que fez de um barranco sob o viaduto a moradia dela e dos filhos de 6, 7 e 10 anos. Ela conta que havia saído de casa para regularizar o cadastro para receber o Bolsa Família no dia 25 de fevereiro, quando o último incêndio registrado na vila ocorreu. Na volta, pegou as crianças na escola e foi para casa. Quando chegou lá, viu os restos do barraco chamuscados pelo fogo. Tudo o que tem hoje foi doado pelos outros moradores.
A dificuldade de acesso à moradia na região, que é controlada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (Dnit), não é o único problema enfrentado pela população. Faltam escolas, postos de saúde, creches. Os problemas levaram a Defensoria Pública a propor, juntamente com o Ministério Público Federal, uma ação civil pública que estabeleceu que nenhuma obra deveria avançar sobre as casas, sem que a questão da moradia estivesse resolvida.
O defensor Estevão Ferreira Couto explica que uma liminar deferida na ação estabeleceu que as famílias em situação mais precária deveriam receber o Bolsa Aluguel, cujo valor varia entre R$ 500 e R$ 900. “Essa liminar foi uma vitória e, com ela, já conseguimos retirar 11 famílias do local, mas não queremos apenas uma situação provisória, queremos uma situação definitiva para a moradia dessas pessoas”, acrescenta.
Os locais visitados não são os únicos a sofrer problemas desse tipo ou a serem ameaçadas de remoção. É o caso das ocupações Wiliam Rosa, em Contagem (MG), que reúne 5 mil famílias, Vitória, Rosa Leão e Esperança, localizadas na capital, compostas, ao todo, por 3 mil famílias, de acordo com o Comitê Popular dos Atingidos pela Copa de Belo Horizonte. A integrante do comitê Isabela Gonçalves relata que as ameaças foram fortalecidas nos últimos meses. Para ela, “essa Copa é um modelo radicalizado de uma cidade que exclui”, concluiu.