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Carta de Mário de Andrade a Manoel Bandeira revela desejo de não se expor

Akemi Nitahara – Repórter da Agência Brasil
Publicado em 18/06/2015 - 21:44
Rio de Janeiro

Uma carta delicada e elegante com mais de quatro páginas, datilografada, trocada entre dois amigos de letras, com confidências, um pouco de intriga e comentários profissionais. Assim é o texto enviada por Mário de Andrade, no dia 7 de abril de 1928, a Manuel Bandeira, mantido sob sigilo, a pedido da família de Mário de Andrade, cujo teor foi divulgado hoje (18).

“Manú, recebi a carta. Está tudo certo. Ou, por outras, tem certos argumentos nela irretorquíveis. Apenas não vejo em que a minha chamada por você 'delicadeza moral' possa prejudicar uma integridade absoluta de amizade entre nós dois”, disse Mário de Andrade a Manuel Bandeira, a quem chamava de Manú.

O texto já havia sido publicado no livro Cartas a Manuel Bandeira, organizado por Bandeira em 1958, porém, 26 linhas foram suprimidas, entre a terceira e a quarta páginas. No original, a parte omitida por Bandeira aparece com riscos a lápis vermelho na transversal. Para o pesquisador de Mário de Andrade e o professor de filosofia Eduardo Jardim, a carta, além de muito bonita, não traz nenhuma revelação sobre a sexualidade do autor, como chegou a ser especulado.

“Outras cartas do Mário para Manuel Bandeira, inclusive de período anterior a essa, já tinham mencionado esse comentário que se fazia sobre a homossexualidade dele. [Em] uma de 1924, se não me engano, ele fala 'será que eu vou ter que fazer o tour dos bordéis de São Paulo?'. Então essa carta não traz nada que vá alterar a visão de biografia de Mário de Andrade que a gente já tem”, explicou Jardim.

Ele lembra que a obra de Mário de Andrade é carregada de sensualidade, carga erótica e fala sobre a hipocrisia da sociedade, tratada na carta com a palavra “sequestro" que, segundo o filósofo, se refere ao recalque descrito pelo psicanalista Sigmund Freud, contemporâneo de Mário e referência em sua obra.

“A literatura de ficção deles, os contos, romances como Amar, Verbo Intransitivo, são denúncias que ele faz da moral hipócrita da época sobre o comportamento sexual das mulheres, dos homens e inclusive dos homens homossexuais. Ele não era um autor careta, ele abordava essas coisas”, disse o professor.

Jardim destaca que Mário de Andrade escreveu mais de 400 cartas para Manuel Bandeira. “É um conjunto precioso”, diz. Segundo ele, a estimativa é que Andrade tenha escrito mais de 15 mil cartas e, agora que o conteúdo dessa foi revelado, os pesquisadores devem se dedicar a temas mais interessantes sobre a vida do escritor.

“Foi bom que isso acontecesse – a revelação do conteúdo – e que tivesse havido essa conversa toda, porque com isso resolvido é como se a gente se sentisse liberado para falar do Mário de Andrade de tantas outras coisas que ainda precisam ser discutidas. É como se isso estivesse ocupando o lugar de uma discussão que agora a gente vai poder ter, eu sinto isso. Foi bom”, esclareceu Jardim.

O acervo de Manuel Bandeira foi entregue em 1978 para guarda da Fundação Casa de Ruy Barbosa, instituição ligada ao Ministério da Cultura. Em 1995, houve análise sobre o sigilo das correspondências, quando completaram-se 50 anos da morte de Mário de Andrade. Segundo a presidenta da entidade, Lia Calabre, a carta-testamento de Andrade dava esse prazo para divulgação desses textos. Porém, uma interpretação da família do escritor impediu que essa carta fosse divulgada a pesquisadores, alegando que isso seria possível em relação às recebidas por ele, e não às enviadas.

“A gente não pode esquecer que a correspondência é um documento ultraprivado, e a correspondência que o sujeito guarda é a que ele recebe, a correspondência do outro. Por isso, estamos falando do acervo de Manuel Bandeira e uma carta do Mário de Andrade. Nós somos uma instituição de guarda, mas não somos detentores dos direitos autorais de nada que está aqui”, ressaltou.

Ela lembra que o conteúdo cai em domínio público no ano anterior aos 70 anos de morte de Mário de Andrade, em 2016. A divulgação para pesquisa da carta, sem autorização para imagem, foi autorizada pela Controladoria-Geral da União, que recebeu pedido via Lei de Acesso à Informação. De acordo com Lia, o processo levou a instituição a repensar a política de guarda de documentos privados por organizações públicas.