Provedores comunitários aumentam possibilidade de conexão na periferia
Quando a Associação da Casa dos Meninos, no Jardim São Luiz, zona sul da capital paulista, decidiu criar uma rede virtual para os moradores do bairro, não sabia ainda nem o que era um provedor comunitário. “A gente descobriu depois que aquilo que gente estava fazendo era isso”, conta a presidente de associação, Daiane Araújo, sobre o início do projeto em 2010.
Um provedor comunitário é uma rede de dados que proporciona conexão entre os computadores, celulares e outros dispositivos de uma determinada comunidade. No caso da Casa dos Meninos, a conexão abrange um raio de 1 quilômetro onde vivem 20 mil pessoas. A referência geográfica é a região de atuação da Unidade Básica de Saúde. “Ela tem uma referência boa para o cidadão comum, porque todo mundo sabe onde fica sua UBS”, explica Daiane.
O Jardim São Luiz é um bairro com mais de 261 mil habitantes que fica a aproximadamente 20 quilômetros do centro da cidade. A região periférica tem elevado percentual de moradores em áreas precárias e favelas, 24% segundo levantamento da Organização Não Governamental Rede Nossa São Paulo. A taxa de homicídios entre jovens de 15 a 29 anos chega a 74,5 a cada 100 mil habitantes, enquanto a média na cidade é de 38,18 casos.
A partir de um servidor instalado na sede da associação, que funciona no bairro desde a década de 1980, é distribuído um sinal via rede wi-fi para o bairro. A rede é apoiada por antenas instaladas em outros pontos estratégicos. Assim, os moradores e trabalhadores da região podem acessar uma rede fechada (intranet) onde, pouco a pouco, vão sendo disponibilizados diversos serviços. Atualmente, o Portal Acervo possibilita o acesso a uma coleção de videoaulas.
Estão no projeto outras propostas que vão sendo postas em prática à medida que a ideia ganha força. Há a intenção de se criar uma biblioteca de empréstimos. Cada usuário vai cadastrar os livros que pode emprestar e o local onde podem ser retirados. “Aí, eu que preciso do livro, entro na plataforma e falo 'olha, preciso do seu livro'”, detalha Daiane. “Vai criar uma biblioteca grande e não vai precisar de espaço físico, nem toda a estrutura que a biblioteca precisa. Quem vai fazer a biblioteca funcionar vai ser a comunidade”, acrescenta.
Envolvimento e produção de conteúdo
Além do serviço em si, a associação espera que a iniciativa aproxime a comunidade da gestão e construção da rede. “O sistema de empréstimos vem no sentido da gente tentar cutucar um pouco as pessoas para elas começarem a contribuir”, enfatiza Daiane. Nesse sentido, o projeto vem se aproximando também da escola do bairro. A ideia é que em breve todo o material de referência das aulas, como filmes, livros e músicas, possa ser acessado através a intranet. “A próxima antena será instalada na escola. A gente já tem autorização e tudo”, comenta.
Mas esse processo envolve, segundo a presidente da associação, uma mudança de entendimento sobre a concepção e o uso da internet. “A gente recebe internet, os programas de Whatsapp ou Telegram, fica no Facebook e não faz ideia de como constrói aquele negócio. Quem está construindo que vai determinar a política daquele lugar”, diz Daiane, sobre as ideias que motivaram a criação da rede comunitária.
A intenção era ter um sistema de comunicação que não dependesse ou ficasse submetido aos interesses de grandes corporações. Com os recursos de um edital da prefeitura de São Paulo foram adquiridos os computadores que fazem o papel de servidor. As antenas são construídas a partir de roteadores reconfigurados, apesar das oficinas da Casa ensinarem a fazer o equipamento até com latas de leite em pó.
Dificuldades de conexão
A construção de um sistema próprio de comunicação também é uma forma, de acordo com Daiane, de contornar os problemas de conectividade enfrentados pela região. “Os alunos com quem a gente dialoga aqui, poucos tem internet em casa. Até eu tive dificuldade para colocar internet em casa. Demora meses para conseguir um ponto de internet”, reclama.
Segundo a pesquisa TIC Domicílios divulgada ano passado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) com dados de 2016, 46% dos domicílios brasileiros não tem conexão com a internet. O índice sobe para 54% entre as famílias com renda entre um e dois salários mínimos. Em 14% das residências o acesso à internet é feito exclusivamente por celular.
Porém, o interesse da comunidade em relação a rede ainda enfrenta resistências pelo costume da navegação pelo celular e os hábitos passivos de uso. “Os jovens com quem a gente trabalha tem uma facilidade de aprender, mas vem com uma carga muito grande de usuário. Produzir é muito mais difícil”, comenta Daiane ao destacar que a proposta é que a comunidade seja a criadora dos conteúdos disponibilizados através da intranet.
“A maior parte do nosso uso da internet é pegar o material que está lá. A intenção do projeto de redes comunitárias é que a própria comunidade produza o conteúdo para circulado na rede”, concorda o assistente de direitos digitais da organização não governamental Artigo 19, Marcelo Blanco. A ONG publicou no início de 2017 um manual dando os passos para montar e regularizar um provedor comunitário.
Periferias e comunidades isoladas
Desde o lançamento do material, grupos sociais dos mais diversos entraram em contato com a entidade para ter assistência para colocar em funcionamento suas próprias redes. “Procura tem bastante. Tem diversos grupos tanto de regiões rurais, isoladas, onde a infraestrutura de transmissão não chega, quanto grupos de lugares urbanos que tem uma conexão muito ruim de internet que se interessaram pela proposta de fazer a sua própria rede”, contou.
O movimento também faz parte, na visão do especialista, de uma reação contra as tentativas de interferir nos conteúdos que trafegam pela rede, como nas discussões sobre a neutralidade da Internet. Em fevereiro, foi aprovado nos Estados Unidos, o fim da neutralidade. Agora, os provedores norte-americanos podem discriminar os conteúdos que trafegam, dando mais velocidade para alguns sites ou aplicativos ou dificultando o carregamento de outros.
Por isso, Blanco diz que é importante entender o funcionamento da internet e das conexões “como um direito, não como um produto”. “A ideia também de uma conectividade alternativa é diminuir esses problemas que nós estamos enfrentando com as operadoras comerciais”, acrescenta.
Entre os grupos que entraram em contato com a ONG desde o lançamento do manual, Blanco destaca a própria Casa dos Meninos, assim como uma comunidade yanomami no Pará, que conseguiu estabelecer uma intranet em um local isolado. Ainda na capital paulista, um coletivo de cinema da zona leste paulistana – Cine Campinho – mostrou interesse em montar um sistema e buscar os recursos para colocá-lo em prática.
“Como qualquer projeto que envolva compra de equipamentos, tem a barreira financeira”, enfatiza o especialista. Além disso, ele lembra de que são necessários diversos conhecimentos específicos para operar uma rede. “Precisa que tenha alguém ou algumas pessoas, para que qualquer problema que tenha, consiga fazer a manutenção da rede, substituir um equipamento”, enumera.
Pequenos provedores comerciais
A dificuldade de conexão em determinadas partes da cidade e em áreas rurais também tem aberto espaço para os pequenos provedores comerciais de internet, que levam conexão em regiões que despertam pouco interesse das grandes operadoras. Segundo a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em 2017 os contratos de banda larga cresceram 7,15% em comparação com 2016. Os pequenos provedores foram responsáveis por 43,72% dessas novas conexões – 1,28 milhão de contratos. Atualmente, existem no país 28,67 milhões de acessos de banda larga fixa, sendo 4,21 milhões viabilizados por provedores regionais.
Em 2009, quando começou a oferecer o serviço em Heliopolis, Augusto Santana conta que era o único provedor na comunidade da zona sul da capital paulista. “ Hoje eu tenho 12 concorrentes”, ressalta sobre como o mercado cresceu em menos de dez anos. Parte das novas empresas surgiu quase diretamente da aposta pioneira do empresário. “Muitos ex-funcionários meus tiveram a necessidade de montar também [um negócio próprio] e estão até lá trabalhando nessa área”, acrescenta.
Foram necessários três anos até que a Godnet, empresa de Augusto, tivesse sustentabilidade e ele pudesse abandonar o negócio original, de móveis para escritório. O empreendedor conta que resolveu investir na área após conseguir ficar com os cabos resultantes da mudança de prédio de uma das estruturas do Tribunal de Justiça de São Paulo. Para evitar o pagamento do serviço de descarte do material, o órgão fez um acordo com Augusto.
Assim, ele resolveu levar o serviço para a comunidade onde vivia e onde tem, atualmente, cerca de 1,4 mil clientes. “Nós fomos aos trancos e barrancos crescendo, por falta de conhecimentos técnicos. Aos poucos a gente foi conseguindo se profissionalizar”, diz sobre a trajetória do negócio. “ Hoje , nós estamos com estrutura própria, chegando em Guarulhos”, acrescenta a respeito da expansão para a cidade na região metropolitana de São Paulo, onde vive atualmente e tem uma base de 400 usuários. Para uma conexão de 15 mega são cobrados R$ 100 por mês, enquanto a de R$ 5 mega custa R$ 79,90.