Ditadura militar, fogo na Vila Socó e um Brasil que não tem onde morar
Um Brasil passando por um momento de expansão do capitalismo, com a manutenção de práticas arcaicas nesse processo de modernização. Assim Nabil Bonduki, urbanista e professor da USP, define o Brasil dos anos da ditadura. Ele afirma que o crescimento do país, naquela época, era “de fazer inveja ao Brasil de hoje”. Mas... esse crescimento estava “baseado em salários baixos”.
Salários baixos que não geravam (e não geram) poder de compra, nem garantiam (e nem garantem) o básico para a sobrevivência. Como moradia, tema do sétimo e último episódio da primeira temporada do podcast Perdas e Danos.
“Debaixo do telhado quente” discute a reforma habitacional, uma das propostas João Goulart em suas reformas de base, e que também foi anunciada no histórico comício de 13 de março, fio condutor pra esse podcast. No comício, ele disse:
“Dentro de poucas horas, outro decreto será também dado ao conhecimento da Nação. Trata-se do decreto que vai regulamentar o preço extorsivo e abominável dos apartamentos que encontram-se vazios”.
Jango falava de um problema que se desenrolava desde os tempos de Getúlio Vargas: o valor altíssimo dos aluguéis. Uma consequência da política de congelamento dos aluguéis e a baixa oferta de imóveis para alugar. Aliado a isso, a moradia não entrava na equação dos salários.
“O custo da habitação, na verdade, não estava previsto no salário do trabalhador. O trabalhador não ganhava o suficiente para pagar uma moradia adequada”, afirma Bonduki. Com isso, dá-se início ao que o urbanista chama de processo de “autoconstrução”, com as casas sendo construídas em etapas, comprando aos poucos o material e construindo em loteamentos, legais ou clandestinos, em favelas e invasões.
Seja barracão, seja casa de alvenaria, essas autoconstruções geralmente acontecem de forma desorganizada, sem o acompanhamento da infraestrutura básica para viver de forma digna, geralmente nas periferias, não raro em terras públicas e muitas vezes em áreas de risco.
Jango tinha uma proposta para isso, muito com base em um encontro organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil. Uma versão urbana da reforma agrária. Mas, como esse é o podcast do “poderia ter sido”, não deu tempo de implementar essa reforma. Mais um plano interrompido pelo Golpe Militar de 1964.
Da ditadura, no entanto, temos o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, o FGTS, que financia habitação própria. Isso para o trabalhador formal. Todo o restante, ficou de fora. E as favelas e comunidades, como sabemos, proliferaram.
Favelas que receberam migrantes vindo das áreas rurais de todo o país, numa promessa de melhoria de vida feita pela industrialização. Dojival Vieira, que nasceu em Lagarto, no interior de Sergipe, mas que chegou na Baixada Santista, em São Paulo, em 1968, ainda criança, acompanhando o pai, a mãe e três irmãos, conta como era viver nessas comunidades.
“Nós morávamos numa casinha que era uma favelinha. Era uma casa de tábua, quando chovia a água enchia e ficava só uma parte da casa que a gente botava móveis e dormia todo mundo lá, amontoado”.
Dojival morava em Cubatão, cidade que, em 1980, tinha pouco mais de 78 mil habitantes. 60% vinham de fora. Cidade que era sede de uma importante refinaria de petróleo da Petrobras, a Presidente Bernardes - maior produtora de asfalto do continente. E a cidade que foi a mais poluída do mundo, que recebeu o título de “Vale da Morte”.
Cubatão, que tinha metade da população vivendo em favelas. Uma delas, a Vila Socó. Favela que pegou fogo, em 1984, no final do governo de João Batista Figueiredo, o último presidente militar. Segundo o Ministério Público de São Paulo, o desastre deixou pelo menos 508 mortos e é o maior da história do Brasil, segundo inquérito do Ministério Público de São Paulo. Mas como as investigações foram arquivadas, o número oficial de mortes é mais de cinco vezes menor: 93 pessoas.
Neste último episódio da primeira temporada, relembramos esse incêndio, as reformas que poderiam ter acontecido e as políticas que a ditadura colocou no lugar. Voltamos logo mais com a segunda temporada!!!
Ouça os episódios já publicados:
- Ep1 - As reformas e o fantasma
- Ep 2 - A escalada e a queda
- Ep 3 - Pavio aceso
- EP 4 - Ação e Reação
- EP 5 - Fermento na Massa
- EP 6 - Meu pirão primeiro
GOLPE DE 64: PERDAS E DANOS
Primeira temporada: Futuro interrompido
Episódio 7 - Telhado Quente
TRILHA DE ABERTURA 🎶
LEITURA LIVRO - …Eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo. E o que está no quarto de despejo, ou queima-se ou joga-se no lixo.
SUMAIA: Esse é um trecho do livro “Quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus. A gente começa esse episódio pedindo a ajuda dela pra falar de um problema bem sério que coloca quase 17 milhões de brasileiros ainda hoje em quartos de despejos, como Carolina chamava as favelas.
LEITURA LIVRO: ... Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visitas, com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, seu sitim. E quando estou na favela tenho a impressão de que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.
ELIANE: Foi em maio de 1958 que Carolina escreveu esses trechos do livro. Ela morava em um barraco na favela do Canindé, na cidade de São Paulo, na beira do Rio Tietê, que de vez em quando teimava de encher e alagava tudo.
SUMAIA: A origem dessas comunidades em que as pessoas vivem como podem, em casas improvisadas e onde serviços como água encanada e coleta de esgoto são luxo, é bem antiga.
ELIANE: Tem raízes numa abolição incompleta da escravidão, foi alimentada pelo êxodo de quem tava às mínguas no campo e turbinada pela promessa de um tal progresso que chegaria com industrialização das cidades.
SUMAIA: Não é por acaso que Carolina era uma mulher preta que deixou o trabalho no campo, em Sacramento, no interior de Minas Gerais, para tentar a vida em São Paulo.
ELIANE: A história de Carolina Maria de Jesus combina bem com o que a gente vai contar nesse último episódio da primeira temporada de Perdas e Danos, o podcast que investiga o Brasil que seria antes do golpe de 1964 e o que foi colocado no lugar.
SUMAIA: O episódio começa com o desafio que muitas pessoas enfrentam que é de ter onde morar.
ELIANE: E termina com o agravamento dessa situação ao longo dos 21 anos de ditadura militar, em que as pessoas pobres, especialmente pretas e migrantes, foram tratadas como coisas em um quarto de despejo. Prontas para serem jogadas fora ou queimadas.
SUMAIA: Vamos contar a história de Vila Socó, a favela em Cubatão, incendiada no último ano do governo militar.
VINHETA DO PODCAST🎶
JOAO GOULART: Dentro de poucas horas, outro decreto será também dado ao conhecimento da Nação. Trata-se do decreto que vai regulamentar o preço extorsivo e abominável dos apartamentos que encontram-se vazios.
ELIANE: Estamos mais uma vez no Comício de 13 de Março de 1964. E entre as reformas de base que foram anunciadas pelo presidente João Goulart havia propostas para enfrentar um problema que vinha ficando cada vez maior
JOAO GOULART: … De todos os apartamentos…Residências que estão desocupadas e que hoje chegam a afrontar o povo e o Brasil, oferecendo até pagamento em dólar para um apartamento brasileiro que deve ser entregue em cruzeiros, que é o dinheiro do povo e a moeda deste país.
Aplausos
SUMAIA:Esse controle dos preços de novos aluguéis tentava atuar num rolo enorme, que só aumentava com a modernização e o desenvolvimento industrial do país. É que nessa época os preços para alugar um imóvel estavam altíssimos.
ELIANE: Além da migração cada vez maior do campo pra cidade, vigorava no Brasil, desde 1942, o congelamento do preço dos aluguéis. Isso quer dizer que pra quem já tava no imóvel os reajustes eram bem pequenos, uma política do governo Vargas que foi sendo prorrogada até 1964.
SUMAIA: Nessa época tinha muito poucos proprietários de casas nas cidades. E o investimento em imóveis de aluguel era considerado um bom negócio. Vargas, e os presidentes que vieram depois, queriam que esse dinheiro fosse investido na indústria, e tentou tornar esse mercado menos atrativo. E, de quebra, fazer uma política que beneficiasse o povo.
ELIANE: Acontece que teve efeito colateral: a falta de novos imóveis para locação e uma chuva de batalhas para despejar inquilinos, porque o despejo sem razão também foi proibido. Os donos de imóveis tentavam despejar inquilinos antigos para colocar o novo aluguel nas alturas e compensar o congelamento que viria depois que o imóvel fosse ocupado.
SUMAIA: Daí, Jango vem com a lei que tentava organizar esse mercado com o tabelamento de preços e a proibição da cobrança em moeda estrangeira.
ELIANE: Mas aluguel caro não era a única consequência da modernização num país desigual. Até porque o pedágio da industrialização quem pagou foram os trabalhadores.
NABIL: O Brasil estava, naquele momento, passando por um processo de modernização, de expansão do capitalismo que estava baseado em salários baixos e com a manutenção de práticas arcaicas num processo de modernização. +
SUMAIA: Nabil Bonduki, que é urbanista e professor da USP, conta o que salários baixos e práticas arcaicas significam
NABIL: Porque o Brasil cresceu entre os anos 30 e os anos 70, crescia a taxa de crescimento de fazer inveja ao Brasil de hoje. Era 5%, 6%, 7% ao ano. Isso estava baseado em baixos salários. E os baixos salários estavam baseados em exclusão de custos importantes no custo de produção da Força de Trabalho.
ELIANE: E se o salário é baixo, não gera poder de compra. Muitas vezes não gera nem o básico da sobrevivência. Como moradia.
NABIL: O custo da habitação, na verdade, não estava previsto no salário do trabalhador. O trabalhador não ganhava o suficiente para pagar uma moradia adequada. Além de a gente não ter um sistema de financiamento no país que pudesse dar conta dessa demanda, o salário não pagava.
SUMAIA: Bom, e se não há dinheiro pro aluguel, o que resta? O que Nabil chama de autoconstrução.
NABIL: Um processo de enorme sacrifício do trabalhador. As casas eram construídas em etapas. Com aquele dinheirinho que ela pagava antes o aluguel, ela paga a prestação e com sacrifício vai comprando o material ,e aí em regime de autoconstruçao vai construindo a casa pouco a pouco. Em loteamentos, loteamentos legais ou loteamentos clandestinos, em favelas, em invasões
TRECHO DA MÚSICA “BARRACÃO🎶
ELIANE: A autoconstrução é um nome bonito pra erguer um barraco? Pode ser e pode não ser. Depende do poder aquisitivo da pessoa. Mas o certo é que são ocupações das áreas da cidade que são normalmente em terrenos públicos, áreas de risco, de forma desorganizada, sem o acompanhamento da infraestrutura básica pra viver de forma digna.
SUMAIA: Eu sei que pra muita gente as coisas parecem que brotaram ali, é natural, porque nunca faltou. Sabe, a pessoa que sequer precisou erguer a parede de casa com as próprias mãos? Que sempre teve banheiro com água na torneira, e não digo nem quente, viu. Com vaso sanitário. Luz. Transporte até em casa ou perto. Caminhão do lixo passando na porta.
ELIANE: Pois é. Isso não é a realidade desse contingente enorme de pessoas que passam a se virar pra construir a própria casa do jeito que der. Se não é até hoje, imagina antes!
SUMAIA: E falta de infraestrutura em locais de moradia leva a uma bola de neve de problemas sociais. Doenças evitáveis, insegurança, lixo acumulado, danos ambientais... a lista é grande e qualquer pessoa minimamente preocupada com desigualdade social conhece ela de cor.
ELIANE: Bom, e pra lidar com essa questão das cidades crescendo de forma desordenada e com pessoas vivendo em condições desumanas enquanto tinha terreno ocioso usado como poupança e cultivando especulação, não foi só o governo que resolveu formular políticas públicas.
SUMAIA: Um monte de profissional se juntou em 1963 para um evento chamado Seminário de Habitação e Reforma Urbana. Foi organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil. Desse encontro da sociedade civil saíram várias propostas que estavam nos planos do governo Jango. Como uma versão urbana da reforma agrária.
NABIL: Como as cidades cresciam muito horizontalmente, a valorização da terra era muito grande e a terra era utilizada como uma espécie de reserva de valor. Ou seja, em vez da pessoa aplicar no mercado financeiro, que ainda no Brasil era excipiente, ela deixava a terra, que aquela terra estava engordando. Enquanto isso, esses loteamentos que eu estou falando iam se estabelecendo em áreas cada vez mais distantes da cidade. Então, a proposta de achar imóveis vazios, penalizar proprietários, que estão especulando, na verdade, isso estava muito ligado também à questão rural, à reforma agrária, que também trabalhava com os terrenos, com as propriedades improdutivas. Então, seria uma vertente urbana da ideia da reforma agrária.
ELIANE: Não deu tempo… o golpe de 1964 veio antes. Mas uma parte das propostas desse seminário acabaram sendo usadas pela ditadura militar.
NABIL:Se propõe, por exemplo, criar um Fundo Nacional de Habitação e um novo sistema de financiamento habitacional que não existia, inclusive com correção monetária. É exatamente o modelo que vai ser implantado quando se cria o BNH.
SUMAIA: BNH: Banco Nacional da Habitação. Empresa pública que financiava empreendimentos imobiliários.
NABIL:…O BNH é criado em agosto de 1964. E logo em seguida, em 67, vai ser criado o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, que vai financiar a habitação popular, que na época ele chamava de habitação popular. Na verdade, era uma habitação para a baixa classe média, para o operário qualificado, que tinha renda fixa, que podia, portanto, tomar um financiamento, porque tudo que o BNH trabalhou, toda a política do regime militar, era uma política de financiamento. Ela era acessível para quem tivesse salário fixo, registro em carteira, podia comprovar renda deixando de fora todos os restantes dos trabalhadores que não tinham essa condição.
ELIANE: É, o FGTS foi criado na ditadura, um dos instrumentos para estimular o sonho da casa própria. E de 1964 a 86, o BNH financiou 4,4 milhões de unidades habitacionais.
NABIL: Como ele é um governo conservador do ponto de vista da questão do direito de propriedade, ele não vai colocar em prática aquelas medidas que iam ao encontro do direito de propriedade. Ele vai financiar a habitação da casa própria, reforçando, portanto, a ideia da propriedade. E tem uma famosa frase do Roberto Campos, que foi o ministro da Fazenda da ditadura militar, dizendo que ao estimular a casa própria, ele está criando um conservador, porque vai ser mais difícil esse novo proprietário, que é um trabalhador, ele se envolver em arruaças e querer alterar a condição de propriedade do país.
SUMAIA: Como Nabil falou, a ditadura fortaleceu o sistema que alcançava apenas o trabalhador formal, e ainda com um salário que não fosse de fome. Todo o resto ficou de fora.
ELIANE: sabe o quarto de despejo de Carolina? A Favela? Bom… essas comunidades proliferaram....
SUMAIA: Pois então, sem ter terra onde plantar e nem garantia de salário para ganhar, ao mesmo tempo que um processo de industrialização prometia trabalho e vida melhor nas cidades, as pessoas migraram. É o êxodo rural.
ELIANE: Um estudo da Embrapa mostra que em 1970, de cada três pessoas que viviam no campo, uma fez as malas, largou tudo e foi tentar a vida nas cidades. 12 milhões e meio de brasileiros.
DOJIVAL: Foi um deslocamento forçado pelas condições precárias em que o nordestino viveu sempre, historicamente, expulso das suas terras, sem acesso a elas, desde a Lei da terra de 1850. porque no momento em que se começou a pensar na abolição da escravidão, imediatamente os latifundiários, eles aprovaram a lei da terra.
SUMAIA: esse é o Dojival Vieira. Um homem negro que nasceu em Lagarto, no interior de Sergipe, mas que chegou na Baixada Santista, em São Paulo, em 1968, ainda criança, acompanhando o pai, a mãe e três irmãos.
DOJIVAL: Eu nunca esqueço do impacto que me causou descer a Serra do Mar de Marinete vindo de Sergipe, depois de três dias de viagem, e ver aquele mundo de luzes na Baixada Santista, sabe? Aquilo é um impacto que ficou na memória, na retina. O que é isso? Para onde meu pai tá levando a gente?
ELIANE: E é aí que a gente vai até Cubatão para começar nossa história da Vila Socó...
EFEITO SONORO🎶
DOJIVAL: Nós morávamos numa casinha que era uma favelinha. Era uma casa de tábua, quando chovia a água enchia, cozinha e ficava só uma parte da casa que a gente botava móveis e dormia todo mundo lá, montuado.
Só que nesta mesma casa tinha banheiro. Percebe? Nesta casa a gente começou, a gente não tinha televisão, começou a ver televisão. Aliás, nunca esqueço que a vizinha do lado, Dona Divina, que era o que seria a classe média hoje, era uma casa bonita, com persianas, e tinha televisão. O que fazíamos eu e meus irmãos? Íamos assistir a novela pelo muro. 4811 de vez em quando ela fechava as persianas a gente voltava eu minha irmã e os dois irmãos tudo de cabeça baixa para casa….
SUMAIA: Dojival e a família chegaram em Cubatão quando o processo de industrialização tava a todo vapor.
ELIANE: Até 1920, a cidade era um porto de passagem para os produtos que chegavam de navio em Santos e depois eram transferidos para o lombo de mulas para chegar até São Paulo.
SUMAIA: Aí surgiram as primeiras indústrias e não pararam mais. Em 1957 a refinaria de petróleo da Petrobras, a Presidente Bernardes, já era a maior produtora de asfalto do continente. Ouve só uma propaganda dela, lá de época.
PROPAGANDA DA REFINARIA CUBATÃO DE 1957: A refinaria Presidente Bernades em Cubatão festeja seu segundo aniversário. Um dos pontos de maior interesse é o conjunto industrial que constitui a maior fábrica de asfalto da América do Sul, ao qual já forneceu o material utilizado no revestimento da pista do aeroporto de Brasília, recentemente inaugurado.
ELIANE: as 24 indústrias de Cubatão, 18 foram instaladas depois da criação da refinaria e até 1975. O petróleo era tão importante que entrou até no hino da cidade.
TRECHO DO HINO DE CUBATÃO: 🎶
SUMAIA:Mas no começo dos anos de 1980, a industrialização, que era vendida como desenvolvimento, pariu a cidade mais poluída do mundo. O Vale da Morte. Esse foi o título dado pela ONU para Cubatão.
LEITURA JORNAL EM INGLES: New York Times, 19 de setembro de 1980 - One of Latin America’s largest petrochemical centers and one of the most polluted communities on earth, Cubatao rests atop coastal lowlands intersected by four lifeless rivers and under a venomous mist fed by 1,000 tons of toxic gases daily [and trapped by a 2 thousand foot range of hills just inland].
TRADUÇÃO - Um dos maiores polos petroquímicos da América Latina e uma das comunidades mais poluídas do mundo, Cubatão fica no topo de planícies costeiras cortadas por quatro rios sem vida e sob uma névoa venenosa alimentada por 1.000 toneladas de gases tóxicos lançadas diariamente na atmosfera…
ELIANE: Tenta imaginar: mil toneladas, tipo um milhão de quilos de gases tóxicos sendo cuspidos pelas chaminés todos os dias, de uma cidade no pé de uma montanha, a Serra do Mar, a menos de 20 quilômetros do litoral, de onde vem um vento constante que segura toda essa fumaça sobre as cabeças de quem vive ali. Essa era Cubatão. Tão tóxica que nem o prefeito morava lá.
LEITURA JORNAL EM INGLES: Of the 55,000 workers, only one-third live here. ”They are the ones who simply can’t afford to move elsewhere,” said Carlos Frederico Soares Campos, Cubatao’s Mayor, whose home is in the coastal city of Santos 17 miles away.
TRADUÇÃO: Dos 55 mil trabalhadores, apenas um terço mora em Cubatão. "São aqueles que simplesmente não têm condições de se mudar para outro lugar", disse Carlos Frederico Soares de Campos, prefeito de Cubatão, cuja casa fica na praia de Santos, distante 27 quilômetros.
DOJIVAL: você pode ver que ainda hoje os melhores empregos da antiga Cosipa, da refinaria Presidente Bernardes, essas pessoas não moram em Cubatão. Moram em Santos, mesmo na periferia de Santos. Moram em Guarujá, moram na Praia Grande. Em Cubatão ficaram os trabalhadores com pouca ou nenhuma qualificação profissional. Então, tinha emprego, mas as condições de vida eram piores.
SUMAIA: E vamos abrir um parênteses, sabe o prefeito que morava de frente pro mar e não no vale da morte? Tem um detalhe importante. Ele não era eleito. Desde o golpe de 1964, Cubatão entrou na lista de cidades consideradas de Segurança Nacional. Isso significava que a população desses lugares não podia votar para prefeito.
ELIANE: Ele era escolhido pelo presidente da República. Um prefeito biônico, como nas capitais do país.
SUMAIA: Fechamos o parênteses e vamos voltar pros moradores de Cubatão. Em 1980, a cidade tinha pouco mais de 78 mil habitantes. 60% vinham de fora. Como Dojival.
DOJIVAL: Cubatão é uma cidade majoritariamente nordestina e negra. É muito difícil você encontrar em Cubatão alguém que não seja ou negro ou nordestino, ou as duas coisas. E se não for nordestino, é filho. Se não for filho, é neto.
ELIANE:Um último dado: metade da população vivia em favelas. Uma delas, a Vila Socó.SUMAIA: Uma favela de palafitas. 1,2 mil barracos construídos em cima de uma área alagada, um mangue.
RODRIGO: Tinha sete anos. E eu me lembro muito bem, porque eu morava aqui, beirando a face do duto. Aqui era aberto. Aí a gente brincava de bicicleta aqui.
ELIANE: Rodrigo Santos hoje tem 47 anos e se lembra que no mangue, bem ao lado da favela passavam os dutos que ligavam a refinaria Presidente Bernardes da Petrobrás ao Terminal da Alemoa em Santos.
SUMAIA: Um morador que estava por perto enquanto a Eliane fazia as entrevistas aproveitou pra dar mais detalhes sobre os tais dutos.
MORADOR: Passa a gasolina do avião, passa tudo, daqui pro porto. Sobe o bruto e desce o refinado.
RODRIGO: E no dia que aconteceu o fato, eu estava comendo pastel, quase aquele pastelzinho pequeno. Eu lembro do cheiro forte de gasolina que correu o dia todo. Ai nós viu aquele caminhão da defesa civil: atenção moradores cuidado porque tá um cheiro forte de gasolina não sabemos de onde é.
ELIANE: A gasolina tava vazando dos dutos. E quem não esquece o que aconteceu em seguida, já na virada do dia 24 para o dia 25 de fevereiro de 1984, é o Rodrigo…
RODRIGO: Quando foi meia-noite, eu só escutei o pé do vizinho no barraco da minha mãe. Sai, sai, sai, Lagoa, sai, sai, Lagoa. O bairro tá pegando fogo, Lagoa. Quando meu pai saiu, que veio a primeira explosão, bum, aquela labareda… deu a terceira explosão. BUM. Eu falei, já era.
SUMAIA: Os números oficiais falam que 700 mil litros de gasolina jorraram dos dutos da refinaria da Petrobras por quase 12 horas. Foi no final da manhã daquele dia 24 que os moradores começaram a alertar as autoridades para o cheiro da gasolina. Nada foi feito.
ELIANE: Agora imagina gasolina, que é menos densa que água, numa região alagada sob a influência das marés…
SOM DE ÁGUA BATENDO NA COSTA 🎶
LAURA CANUTO: Eu só me lembro que eu cheguei em casa muito cansada, porque eu trabalhei aquela semana, a semana todinha. Eu estava muito cansada. Eu cheguei e fui me deitar com meus filhos.
SUMAIA: Essa é Laura Canuto, hoje com 77 anos
LAURA CANUTO: Quando foi uma hora da manhã, eu escutei aquele bafafá, conversando, conversando. Eu falei alguma coisa, eu acordei, estava cansada, eu falei alguma coisa está acontecendo. Aí eu abri a janela, um colega meu falou assim, não acende a luz não, porque está cheio de gasolina debaixo dos barracos, que aqui era palafita, né?
ELIANE: No dia do incêndio, estavam ela, a mãe e os dois filhos pequenos no barraco.
LAURA CANUTO: minha filha, naquele tempo eu tinha acabado de chegar do interior e não tinha nada. Eu tinha é dois filhos pequenos pra criar que meu marido foi embora, me deixou com duas crianças. Só o que eu tinha era dois filhos pequenos pra criar. Só isso.
ELIANE: E saiu com eles, né?
LAURA CANUTO: Aí eu peguei e saí com meus filhos. a gente saiu correndo por aí. Cheio de gente. Muita gente por aí. .
SUMAIA: Já Neigila tinha só quatro anos na noite do incêndio…
NEIGILA: A gente sobreviveu porque ficamos na casa da minha avó no final de semana. Todos os finais de semana, a minha mãe levava a minha irmã para passar o final de semana na casa da minha avó. E eu sempre voltava com ela. Nesse dia eu cismei que eu queria dormir na casa da minha avó. E eu acabei ficando por lá. E a minha mãe voltou pra casa com meu tio de 19 anos, que também faleceu no incêndio.
ELIANE: Neigila e a irmã, que é só um ano mais velha, sobreviveram. Mas elas perderam a mãe, o pai e o tio. Restou o trauma. Toda vez que Neigila fala do incêndio é como se carregasse uma culpa pesada demais para quem era só uma criança…
NEIGILA: Meu tio não queria ir a princípio. Mas aí a minha vó: ‘vai meu filho, leva. Lá é perigoso pra sua irmã’. Ai ele falou: ‘tá bom mamãe, eu levo mas eu volto’. Lembro da cena como se fosse hoje. Ele tinha acabado de chegar do serviço, tinha tomado banho, tava penteando o cabelo, olhando pra penteadeira. Minha avó pedindo pra ele. E aí ele falou: “tá bom mamãe, eu levo”. E... E meu tio acabou indo no meu lugar
SUMAIA: Oficialmente, o incêndio da Vila Socó matou 93 pessoas. Mas quem sobreviveu tem certeza que esse número é maior. De novo o Rodrigo.
RODRIGO: No parquinho mesmo, meus amigos não voltaram mais. Meus amigos não voltaram mais. Eu perdi, acho que eu perdi uns... Da minha classe do parquinho, eu perdi três amigos. Quando retornaram as aulas, as crianças não voltaram. Entendeu?
ELIANE: Rodrigo estudava na Escola João Ramalho, onde estava matriculada a maioria das crianças da Vila Socó. E das crianças que nunca mais voltaram para a sala de aula, nem todas estão na lista oficial de mortos.
RODRIGO: Só dois estão. Um acho que nem…. Porque assim… Um adulto Quando, Quando… dependendo da caloria, ele se transforma num toco. E uma criança? Teve famílias que foram dizimadas todas. Toda a família. Não acharam nada.
ELIANE: Tá incompleta?
RODRIGO: Pra mim, tá. Não foram só 95 ou 92 pessoas. Foram muito mais.
KLEBER: Minha mãe era uma das professoras da escola João Ramalho.
SUMAIA: Kleber Pieruzzi tinha 11 anos no dia do incêndio e não morava na Vila Socó. Mas conta que a mãe dele, a professora Edithe, também contestava o número oficial de vítimas.
KLEBER: Minha mãe comentava comigo que cerca de 200 alunos desapareceram da escola na época. Então existe o número de 93, porque eu acho que foi o número de corpos que conseguiram localizar e fazer o sepultamento. Mas na verdade foi um número imensamente maior de falecidos.
ELIANE: Paula Ravanelli é presidente do Conselho da Mulher de Cubatão. Ela tinha 15 anos na época e lembra da mãe sendo convocada para atender as vítimas do incêndio
PAULA: Minha mãe é enfermeira, na época eu trabalhava na Santa Casa de Misericórdia de Santos, que é um hospital em Santos, que tem uma ala de queimados. Era o único hospital que tinha uma ala de queimados, que recebeu a maior parte das vítimas. Então eu me lembro de madrugada, de irem na minha casa, chamar minha mãe, para todos os profissionais de saúde foram convocados para socorrer essas vítimas.
SUMAIA: Os números de feridos não são precisos. Alguns falam em 2 mil pessoas. Outros documentos falam em 4 mil. Nós pedimos para Santa Casa de Santos a informação oficial. Também pedimos informações sobre eventuais feridos graves que não conseguiram sobreviver. Mas, apesar do esforço, a Santa Casa não conseguiu localizar as informações, pois o prazo máximo para guardar os documentos médicos é de 20 anos.
PAULA : A minha mãe, ela não comentou muito com a gente, mas tenho certeza que ela voltou traumatizada.
ELIANE: Logo depois do incêndio, os promotores responsáveis pelo caso, Marcos Ribeiro de Freitas e José Carlos Pedreira Passos, fizeram um cálculo bem diferente do número de vítimas. Eles juntaram os relatos dos moradores, cruzaram com o número de pessoas que viviam no local, matrículas de crianças nas escolas e o número de feridos.
SUMAIA: Segundo a apuração do Ministério Público de São Paulo, entre 508 e 700 pessoas morreram no incêndio. Se esses números estiverem certos, o caso de Vila Socó é o maior incêndio da história do Brasil.
TRILHA DE PODCAST🎶
ELIANE: E a favela de Cubatão sendo incinerada no último ano de governo, do último presidente militar, João Batista Figueiredo, ainda carrega outros símbolos. Como a falta de transparência.
SUMAIA: No inquérito, os promotores apontam uma fraude processual. O ofício de 1985, acusa a Petrobrás de ter extraído das provas a parte do tubo de onde a gasolina vazou. Sem esse duto, que, segundo o Ministério Público, apresentava desgastes e apontava para a falta de manutenção, ficou fácil dizer que a culpa foi uma falha humana.
LUCI: Porque essa ideia de falha humana, ok, no processo de trabalho sempre tem alguém ali, mas quando se usa esse recurso, no geral, é para deslocar a responsabilidade da pessoa jurídica para uma pessoa física, individualizar e a empresa não responder por isso. E, muito claramente, o acionamento da ideia de ser uma empresa estatal, localizada numa área de segurança nacional, com o cerceamento da devida investigação.
ELIANE:.Luci Praun é professora da Universidade Federal do Acre e da Federal do ABC e estuda como os tentáculos da ditadura militar estavam dentro da Petrobras.
LUCI: Os promotores, na época, levantam o debate de que uma parte da tubulação, onde claramente se via problemas de manutenção, nela teria sido cortada, mas eu não tenho como dizer além disso. Agora, a questão da falta de transparência em relação a documentos, você vê que aquilo que foi entregue como tudo não é tudo. Tem documentos no arquivo do Estado de São Paulo com a empresa participando de comunidade de informações em Santos. Tem documentos no arquivo do São Paulo que atestam o empréstimo da infraestrutura da empresa para comunidades de órgãos de repressão, também na Baixada Santista. Então, isso não está no acervo da Petrobras. Assim como, por exemplo, parte da documentação sobre Vila Soco, relatório sobre Vila Soco, em relação às populações indígenas, não tem nada. Alguns documentos falam, conforme anexos, mas os anexos não estão lá. Então, a gente vai observando e vendo que o arquivo não está completo, não foi entregue tudo, falta coisa, e sem dúvida nenhuma, o depoimento dos trabalhadores, o testemun ho deles foi fundamental, porque algumas coisas também não estariam documentadas
SUMAIA: Documentos que desapareceram, provas que sumiram. Os moradores da Vila Socó chamam de Operação Abafa, porque atrapalhou as investigações que poderiam incriminar os dirigentes da estatal. Ah! e sabe os promotores que investigavam o caso? Foram afastados do inquérito.
ELIANE: Em 2014, a Ordem dos Advogados do Brasil em Cubatão criou uma Comissão da Verdade para retomar as investigações sobre o incêndio.
SUMAIA: Nas audiências da Comissão da Verdade o ex-presidente da Petrobras da época, Shigeaki Ueki, admitiu que o volume de gasolina que vazou do duto da empresa naquele 24 de fevereiro de 1984 pode ter sido bem maior: 2,5 milhões de litros.
ELIANE: Mas ele negou a tentativa de abafar as investigações. E voltou a repetir que o número de vítimas é esse mesmo. 93 pessoas. Essa foi a primeira e última vez que o ex-presidente da Petrobrás falou sobre o incêndio da Vila Socó. Infelizmente a Assembleia Legislativa de São Paulo não encontrou os registros em áudio desse audiência. Apenas a transcrição.
SUMAIA: Quando era presidente da estatal, Shigeaki prometeu triplicar a produção da empresa. ///
SHIGEAKI UEKI: Com o presidente Figueiredo, assumi o compromisso de triplicar a produção de petróleo no Brasil. Se eu atingisse essa meta, ia pedir demissão.
ELIANE: Nós não conseguimos contato com o Shigeaki Ueki. Mas em agosto de 2020, o ex-presidente da Petrobrás e ex-ministro de minas e energia do Ernesto Geisel participou de uma live na Academia do Futuro, grupo de jovens vinculado ao Nipon Country Club, em São Paulo. Esse é um trecho da live.
SHIGEAKI UEKI: Quando consegui atingir a meta de triplicar a produção de petróleo no Brasil e termos grandes descobertas de reserva de petróleo offshore, na plataforma continental brasileira, fui pedir demissão para ele. Aí ele falou, olha Ueki, o meu governo teve muitas dificuldades, mas um setor que eu tenho orgulho é o setor centro petróleo.
ELIANE: De fato, em 1983, a Petrobras retomou o crescimento na produção, com novas descobertas e novas técnicas de exploração de campos antigos. Mas Ueki deixou a presidência da empresa mesmo em agosto de 1984. Exatos seis meses depois da Vila Socó ter virado cinzas.
SUMAIA: Mas ele nunca admitiu a responsabilidade da Petrobras no incêndio.
ELIANE: A gente procurou a Petrobras, mas ela não respondeu. Deixa eu ler algumas perguntas:
O que a Petrobrás diz sobre o relato dos moradores e agentes de segurança, de que o número de mortos pode ter sido até 5 vezes maior que o registro oficial?
O que provocou o vazamento? E qual o volume de gasolina que vazou naquela noite, segundo a Petrobras?
O que foi feito com o pedaço do duto que o inquérito do Ministério Público diz que foi tirado dias depois do local e que peritos apontaram como fonte do vazamento da gasolina?
Como a empresa avalia o posicionamento que os dirigentes da Petrobras tiveram à época da tragédia?
Ficou tudo sem resposta, infelizmente.
SUMAIA: Bom, sem responsáveis e também sem indenizações consideradas justas por parte das famílias.
NEIGILA: Hoje, atualizado em Real, daria 7 mil reais e pouco.
ELIANE: Essa é a Neigila Aparecida de novo… a que sobreviveu ao incêndio porque ficou na casa da avó.
NEIGILA: Quem recebeu foi meu vô. Não sei quanto ele recebeu do meu tio. Não tenho a mínima ideia. Não tem nenhum documento que prove que realmente foi a Petrobras que pagou esse val or de indenização, até onde eu sei. Como nós éramos menores, nós tínhamos direito a uma pensão vitalícia. Nós nunca recebemos até hoje. Nunca tivemos ajuda financeira de ninguém. Foi pago somente a indenização e meu avô prestava contas pro promotor, em fórum, e ele usava os juros que ele tinha no banco pra poder ajudar nas despesas para manter a gente. O que a gente recebeu, pra mim, foi muito símbólico. tipo, como eu posso dizer, um calaboca, né? pra dizer que a gente nunca recebeu nada. Tem muita gente que, eu tenho certeza, que não recebeu indenização nenhuma. Então a justiça eu acho que ela não foi feita ainda. Mas eu acredito que ela vai chegar.
ELIANE:A cidade de Cubatão tenta, hoje, reabilitar sua imagem perante o Brasil e o mundo. Tanto que a fonte destacada para falar do incêndio da Vila Socó com a gente foi o secretário de Turismo. É o Fabrício Lopes. A pauta ambiental é importante para a prefeitura. Assim como as persistentes comunidades que ainda existem por lá.
SUMAIA: A cidade tem 112 mil habitantes. Quase 50 mil pessoas ainda residem em regiões de periferia vinculadas ao manguezal.
ELIANE: O secretário também falou sobre a preservação da história da Vila Socó.
FABRÍCIO LOPES: Uma das coisas que a gente pode fazer em Cubatão é pisar numa parte de onde aconteceu uma história que é triste, assim como tantas outras histórias tristes que a gente tem no mundo afora. Eu costumo citar muito a questão de Auschwitz. O que te leva a visitar Auschwitz? Não é uma coisa boa que aconteceu lá, infelizmente, mas é você estar no local onde a história aconteceu e aqueles ensinamentos que a história deixou hoje nos servem de lição.
SUMAIA: Mas, na prática, não resta muita coisa da comunidade que foi reduzida a cinzas.
ELIANE: Quando eu estive no local no dia 25 de fevereiro, data que marcou os 40 anos do incêndio, o discurso oficial era de que ali havia um memorial das vítimas. Mas nem a placa com os nomes das pessoas identificadas que morreram estava lá. O terreno juntava lixo, mato alto e uma cruz singela, caiada de branco, em uma espécie de altar.
FABRÍCIO LOPES: A gente sabe que a área ficou um tempo sem a manutenção adequada, mas nós temos o compromisso de fazer a manutenção e a revitalização daquele espaço, a recolocação da placa, que já está em andamento, para tratar esses cidadãos que perderam suas vidas nessa grande tragédia que nós vivemos, porque eles, na verdade, são heróis. Eles abriram os olhos da sociedade brasileira para a tragédia humanitária que existia naquele local, e isso é o que nos traz força hoje e vamos conseguir, em menos de 10 anos, eliminar todas as palafitas existentes na cidade.
SUMAIA: Quanto foi furtada a placa?
FABRÍCIO LOPES: A placa foi furtada há uns dois anos.
SUMAIA: E por que até hoje não foi colocada?
FABRÍCIO LOPES: Faltou um pouco de atenção e cuidado da nossa parte, Sumaia, mas a gente vai reaver isso o quanto antes.
SUMAIA: E tem previsão para esse projeto de revitalização? Em que fase ele está?
FABRÍCIO LOPES: O projeto de revitalização do complexo entre o monumento e o Parque Cotia Pará está em fase final de elaboração.
ELIANE: Fora isso, não restam vestígios do incêndio no local. Foram construídas no lugar 399 casas e o bairro passou a ser chamado de Vila São José. Mas as melhorias só vieram mesmo depois de muito protesto. Vamos trazer o Rodrigo, sobrevivente do incêndio de volta aqui.
RODRIGO: ficam falando: ‘não, mas vocês ganharam as casas’. mas não sabem o sofrimento que foi pra ganhar essas casas. Porque pra ganhar essas casas teve guerra. Não foi assim: ‘ah, porque a Petrobras quer dar porque é boazinha’… Não teve quebra-pau. Teve pau. Eu me lembro que nossos pais tiveram que colocar a gente deitado na pista para não morrer. Porque a tropa de choque veio mesmo para matar mesmo, entendeu? O pau quebrou mesmo, eu lembro. Eu fiquei grudado aqui na perna do meu pai, eu sempre ficava agarrado nele. E a tropa de choque batendo.
SUMAIA: Os dutos, que antes tinham partes expostas, hoje estão enterrados. Aliás, há dutos por toda parte, na região. Kleber, o filho da professora Edithe, mostra as marcações das tubulações espalhadas pela Vila.
KLEBER: Aqui passa vários dutos de óleo, de combustível, ainda passam, se você observar ali por onde nós viemos caminhando, lá tem as placas, tem aquelas estacas em amarelo de concreto e ali está dizendo cuidado com os dutos, ou seja, para que ninguém faça perfuração ou algo do tipo.
ELIANE: A economia seguiu. A cidade continuou. E as pessoas desapareceram sem deixar vestígio. Nem nome, nem corpo. Elas morreram como viveram: invisíveis. A ditadura, afinal de contas, era especialmente boa nisso. Fazer sumir.
DOJIVAL: Os mortos da Vila Soco, que não eram da classe média, eram retirantes nordestinos como eu, pretos e pobres. Não existem. Tiveram um apagamento da sua história, transformada em cinzas. eles não têm atestado de óbito. Três, quatro, cinco jogados no mesmo caixão... É como se, na realidade, essas pessoas nunca tivessem existido. Imagine você.
SUMAIA: Esse ó Dojival de novo. A gente disse que ele ia seguir conosco até o final. Quando teve o incêndio, Dojival era um jovem vereador na Câmara de Cubatão. Depois disso, abandonou a política. Mas só a política partidária. Na verdade, seguiu mantendo algumas promessas vivas. Uma delas, não esquecer.
DOJIVAL: Centenas de pessoas abrigadas no centro esportivo, tinham perdido filho, mãe, pai, famílias inteiras. Você pode imaginar. Ali no Centro Esportivo Humberto de Alencar, Castelo Branco, tem, guarda esse triste e sinistro nome. E a gente estava sob choque. Enterrando os mortos, sabe? E eu encontrei essa senhora, sabe, situação assim de... E ela me disse o seguinte, Dojival, meu filho, ela me tratava assim, eu não lembro o nome dela, já deve ter morrido, porque ela era uma senhora já, bem velhinha. Meu filho, não deixa que isso vire cinza. Ela falou isso pra mim….Você não imagina isso me calou tão fundo que eu nunca mais esqueci essa frase. Não deixa que isso vire cinza. Pra mim foi uma profecia isso. Quando a gente conseguiu em 2014, a dias da incineração, salvar os 22 volumes… eu me emociono até hoje, porque é disso que se trata, cara, ia virar cinza. Você percebe a importância disso que a gente está fazendo? ia virar cinza, tudo ia virar cinza. Esses documentos, que hoje estão sob guarda física e estão digitalizados, iam virar cinzas. Teriam conseguido apagar a memória e a história.
ELIANE: As 22 pastas se referem ao inquérito instaurado pelo Ministério Público. As investigações foram suspensas e os documentos arquivados depois de pressões do Procurador-Geral da República da ditadura, à época. A Comissão da Verdade recuperou os volumes e tenta achar outros arquivos ainda desaparecidos.
SUMAIA: E sim, eles seriam incinerados. Os documentos foram desarquivados em 2014. Menos de um ano depois, em 2015, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a destruição de mais de 5 mil processos judiciais que já eram considerados encerrados ou extintos e que tivessem mais de 10 anos de baixa definitiva.
ELIANE: E a gente, nesse podcast todo, também tá tentando fazer a nossa parte. Muitas pessoas viraram cinzas durante a ditadura. Mas a história dessas pessoas, a história do país não tem que virar. Não pode virar.
SUMAIA: Essa é a contribuição que o jornalismo público dá para lembrar que esse país tão desigual já ousou tentar ser diferente. E o que muita gente pensa que é sina, é, na verdade, projeto.
ELIANE: É aqui que a gente se despede. Por ora. Porque não dá para falar de tanta coisa que ficou pra trás sem contar quem lucrou com o que se instalou por cima de toda essa história interrompida..
SUMAIA: A gente se ouve na segunda temporada. Quando tiver data, a gente avisa por aqui.
ELIANE: Será a vez de contar a história de quem investiu na ditadura para faturar com ela.
TRILHA DOS CRÉDITOS 🎶
SUMAIA: Futuro Interrompido foi a primeira temporada do podcast Perdas e Danos. Essa é uma produção original da Radioagência Nacional, veículo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
ELIANE: Muito obrigada por ter nos acompanhado até aqui. Salva nosso perfil, se não fez isso até agora, pra não perder conteúdo extra e a segunda temporada. E não esquece de usar a ferramenta de avaliação da plataforma se você gostou do que ouviu até aqui. Isso ajuda a chegar em mais gente.
SUMAIA: Esse podcast é idealizado e narrado pela Eliane Gonçalves e por mim, Sumaia Villela. A concepção de pauta da primeira temporada é minha. A Sumaia desenhou a segunda temporada.
ELIANE: A nossa dobradinha segue em todas as etapas do projeto: pesquisa histórica, produção, entrevistas, roteiro, montagem e pós-produção no geral.
SUMAIA: Contamos, ainda, com a produção de Fran de Paula.
ELIANE: A edição, parte da montagem e divulgação nas plataformas é da Beatriz Arcoverde.
SUMAIA: A identidade sonora do podcast e a sonoplastia do episódio são de Jailton Sodré e foi feita a partir das composições gentilmente cedidas pelo Nelson Lin, nosso colega aqui na EBC. O Nelson também interpretou os trechos da música Cartas Celestes 2, do Almeida Prado, que aparecem na abertura e aqui no encerramento.
ELIANE: Já a identidade visual e a arte são assinadas pela Caroline Ramos.
SUMAIA: A vinheta do podcast tem as vozes de Marli Arboleia e Sayonara Moreno em destaque.
ELIANE: Pedro Lacerda fez a leitura em inglês da notícia do The New York Times, e Luciano Barroso é a voz da versão em português. Ah, a Bia Arcoverde fez uma participação especialíssima ao ler os trechos do livro da Carolina Maria de Jesus.
SUMAIA: A versão do episódio em Libras, divulgada no YouTube, é feita pela equipe da EBC.
ELIANE:: Nesse último episódio usamos material histórico do The New York Times, Arquivo Nacional, Comissão da Verdade Rubens Paiva e da Academia do Futuro do Nipon Country Club. Também usamos, para fins jornalísticos, um trecho da música Barracão, de Teixeira e Luiz Antônio, na voz de Heleninha Costa, e Pesadelo, composta por Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós e interpretada pelo grupo MPB4.
SUMAIA: Agradecemos a Elaine Patrícia Cruz, Dorgival Vieira, Mônica Horta e Cláudia Costa pela ajuda com informações e pesquisa.
ELIANE: E novamente, se puder tirar um tempinho para contar o que achou do podcast, agradecemos muito. Por favor, deixe uma mensagem em ouvidoria@ebc.com.br ou no site ebc.com.br/ouvidoria. Também dá para fazer uma manifestação em Libras para o número (61) 99862-1971. A gente fica por aqui, mas se ve em breve. Tchau…
SUMAIA: Tchau! Até a próxima!
ENCERRAMENTO DA TRILHA DOS CRÉDITOS 🎶
Sobe som 🎶
Concepção, idealização e narração |
Eliane Gonçalves e Sumaia Villela |
Pesquisa histórica, produção, entrevistas, roteiro, montagem e pós-produção no geral. | Eliane Gonçalves e Sumaia Villela |
Produção, pesquisa, entrevistas e apoio | Fran de Paula |
Edição, montagem e coordenação dos processos |
Beatriz Arcoverde |
Identidade visual e design: |
Caroline Ramos |
Interpretação em Libras: | Equipe EBC |
Implementação na Web: |
Beatriz Arcoverde |
Identidade sonora e a sonoplastia | Jailton Sodré |
Trilhas | Nelson Lin |
Leitura em inglês de recortes de jornal | Pedro Lacerda |
Tradução de Recortes de Jornal | Luciano Barroso |
Destaques de vozes na vinheta do podcast | Marli Arboleia e Sayonara Moreno |
Trilha de abertura e encerramento | Nelson também interpretou os trechos da música Cartas Celestes 2, do Almeida Prado, que aparecem na abertura e aqui no encerramento. Obrigada, Nelson! |
Agradecimentos | Elaine Patrícia Cruz, Dorgival Vieira, Mônica Horta e Cláudia Costa |
Quer saber mais sobre o tema? Confira o Caminhos da Reportagem, produzido pela TV Brasil e a série de reportagens e entrevistas da Agência Brasil.