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Direitos Humanos

Reformas de Base de Jango miravam na cidadania pela alfabetização

Podcast Golpe de 1964: Perdas e Danos - 5° ep: Fermento na Massa
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Eliane Gonçalves e Sumaia Villela - Radioagência Nacional
02/05/2024 - 07:15
São Paulo e Brasília
Brasília (DF) 02/05/2024 - Podcast - Perdas e Danos
Arte EBC
© Arte EBC

O acesso a educação era um problema estrutural do país na década de 1960, e estavam entre as reformas propostas por Jango. A diferença é que o Plano Nacional de Alfabetização foi assinado em janeiro de 1964 e previa a coloboração dos estudantes para agilizar o processo de aprendizado dos adultos.

A escritora e educadora popular, Maria Valéria Rezende era na época uma jovem religiosa da congregação das Cônegas Regulares de Santo Agostinho, ela fazia parte da equipe que ia implantar o programa:

" A ideia era a seguinte, você treina os estudantes secundaristas e universitários para alfabetizar com o método proposto pelo Paulo Freire, e depois interrompe-se durante um semestre as aulas dos cursos secundários e das universidades e os estudantes iriam seis meses pro campo alfabetizar os trabalhadores."

O podcast Golpe de 64: Perdas e Danos apresenta o quinto episódio, Fermento na Massa, que traça um perfil da situação da educação brasileira e apresenta as propostas para o setor que estavam sendo discutidas no governo de João Goulart. Neste episódio educadores que se misturam aos mais de 40% de analfabetos brasileiros de 1960 na história de mais um futuro interrompido do Brasil. O da educação.

Para Paulo Freire, patrono da educação brasileira, os anos que antecedem o golpe de 1964 foram de muita riqueza para o Brasil..

"Eu comecei a perceber uma coisa, que hoje eu digo teoricamente, é que ninguém aprende sem primeiro apreender o objeto que aprende…."

Mas era uma riqueza de ideias e projetos para alfabetização. Porque na educação, mesmo, a situação era de penúria. Lia Faria que viveu essa época e hoje é professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro conta que "a classe trabalhadora, o máximo que ela podia ter, até aquele final dos anos 50, início dos 60, era o primário, com muito sacrifício."
Mas iniciativas pipocavam no Rio Grande do Norte, em Brasília, no Rio Grande do Sul. Maria Veléria Rezende lembra: "Nós éramos muito entusiasmados e acreditávamos que tudo isso ia dar certo e que o Brasil estava mudando, e mudando para melhor, e que tudo isso ia acontecer. Só depois é que eu fui tomando consciência de que era verdade, era um golpe de direita e a coisa era feia, era séria."
Para seguir aplicando a pedagogia que ela tinha aprendido com Paulo Freire, Maria Valéria se infiltrou no sistema de ensino que foi criado pelos militares para substituir o plano nacional de alfabetização. Ela foi dar aulas no Mobral.
Atualmente o analfabetismo é hoje um problema menos presente, embora ainda exista no Brasil, com uma taxa de menos de 6% da população, mas há ainda o desafio do analfabetismo funcional.
Universidades

Durante a construção de Brasília, o então presidente Juscelino Kubitschek, transferiu para Anísio a responsabilidade de construir um novo modelo de universidade para a nova capital do país. E Anísio convida um jovem antropólogo, conhecido pela ousadia, para dividir a tarefa: Darcy Ribeiro. Juntos, eles começam a dar forma a essa proposta que viria a ser a UNB, a Universidade de Brasília, inaugurada em 1962. No dia 21 de abril. Praticamente dois anos antes do golpe. E a professora da UERJ, Lia Faria destaca:

" A UNB era totalmente diversificada. Não era aquela antiga universidade dos professores acadêmicos, também uma universidade muito fechada... A ideia eram cursos mais livres, cursos que tivessem o início de uma formação geral muito grande e que o aluno pudesse ir escolhendo como ele ia montando o seu curso. É uma ideia super arrojada, que vem do Anísio Teixeira, que vem do Darcy Ribeiro, e o Darcy convida só pessoas brilhantes, não só do Brasil, mas do mundo inteiro, para serem os professores daquela nova universidade, uma universidade do futuro, uma outra composição, negando até então aquela universidade que havia de poucos, com aqueles catedráticos, que era fechada inclusive no seu corpo de professores."

Mas o sentido de modernização também foi norte importante para os militares que assumiram o poder. O professor Rodrigo Patto, da Universidade Federal de Minas Gerais, explica que não existe uma contradição, mas entendimentos diferentes do que é modernização do ensino superior: 

"Os militares logo abraçaram a ideia de fazer uma reforma universitária e ele aproveitaram muito as ideias anteriores, que vinham do período João Goulart, como aumentar a verba para pesquisa, criar a pós-graduação, racionalizar as estruturas das universidades com a criação de instituto de pesquisa, com o fim - a extinção - das cátedras e a criação de departamentos no lugar das cátedras. A diferença é que a ditadura fez tudo isso de maneira autoritária, vinha de cima para baixo, e também de uma maneira combinada com repressão. Houve muitos expurgos, muitos professores e pesquisadores foram demitidos, foram proibidos de trabalhar, proibidos de receber bolsa de pesquisa… Então a reforma universitária que a ditadura implantou foi muito pior do que teria sido num contexto democrático, né?"

Se tivesse acontecido...

Para o professor José Eustáquio Romão, um dos fundadores do Instituto Paulo Freire, não existe história do seria, se tivesse acontecido, se o projeto tivesse sido aplicado os resultados positivos seriam claros...

"Eu tenho uma hipótese muito forte a partir dos testemunhos que eu tenho de outros países que aplicaram. É a contraprova para mim. O Darcy expulso do Brasil  fez a reforma universitária no Uruguai. Uma das melhores da América Latina, é a Universidade da República do Uruguai, baseada no modelo brasileiro da Universidade Brasília. Fez a reforma no Peru, universitária. Esse modelo de universidade inovadora, que vingou no mundo, a matriz é a Universidade de Brasília original.
O Chile inteiro passou pela experiência dos círculos de cultura e alfabetizou a população do Chile todo. Praticamente todo. No método Paulo Freire. Depois deu aula em Harvard e atuou em vários países da África. Influenciou até na Coreia do Sul. Era um país miserável, arrasado, oprimido, destruído pela Segunda Guerra Mundial e destruído por uma guerra que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Um dos países que tinham um dos problemas de educação mais graves do mundo e de miséria, porque o analfabetismo nunca anda sozinho. A Coreia resolveu o seu problema numa geração usando o método Paulo Freire. Eu não acreditava nisso. Eu fui para a Coreia ver isso. Eles adotaram mesmo. Então, a contraprova, para mim, demonstra que a gente pode falar do se: se tivesse acontecido o círculo de cultura, se o golpe fosse dado de acordo com o que os conspiradores estavam planejando, que era para muito mais tarde, o golpe não teria ocorrido, na minha opinião. Porque os círculos de cultura teriam politizado o país, e haveria resistência."

Toda quinta-feira tem conteúdo novo. Ouça os episódios já publicados:

 

GOLPE DE 64: PERDAS E DANOS

Primeira temporada: Futuro interrompido

Episódio 5 - Fermento na Massa

TRILHA DE ABERTURA 🎶

PAULO FREIRE: Foi um tempo de muita riqueza, entende? 

ELIANE: Esse é o educador mais famoso do Brasil. E um dos mais reconhecidos no mundo. Rodou muitos países aplicando seus conhecimentos em alfabetização de massa. E que, assim como admiração, acumula ataques virulentos ainda hoje, aqui, no seu país natal.

PAULO FREIRE: Eu comecei a perceber uma coisa, que hoje eu digo teoricamente, é que ninguém aprende sem primeiro apreender o objeto que aprende….

SUMAIA: Paulo Freire. O patrono da educação brasileira. E o tempo a que ele se refere, de muita riqueza, são os três anos que antecedem o golpe de 1964.

ELIANE: A riqueza era de ideias e movimentos pela alfabetização do Brasil. Porque na educação, mesmo, a situação era de penúria.

SONORA LIA: A classe trabalhadora, o máximo que ela podia ter, até aquele final dos anos 50, início dos 60, era o primário, com muito sacrifício. 

SUMAIA: Lia Faria viveu essa época. Hoje é professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Foi estudante antes do golpe, deu aula no equivalente ao ensino médio durante a ditadura, e trabalhou com Darcy Ribeiro por 14 anos.

ELIANE: Darcy, Lia, Paulo. Educadores que se misturam aos mais de 40% de analfabetos brasileiros de 1960 na história de mais um futuro interrompido do Brasil. O da educação.

SUMAIA: Oi, eu sou Sumaia Villela, e este é o quinto episódio de Perdas e Danos, podcast que investiga o país que estava sendo construído antes de ser atropelado pelo golpe de 64 e os 21 anos de ditadura militar que vieram depois.

ELIANE:  E eu sou Eliane Gonçalves. Se você é novo por aqui, sugerimos que ouça os outros episódios depois que terminar este. Estamos percorrendo as reformas de base do governo João Goulart, um pacote de medidas que pretendiam mudar problemas estruturais do Brasil.

SUMAIA: E o da educação era um dos mais básicos. Havia uma luta para garantir cidadania aos mais de 27 milhões de brasileiros que não sabiam ler ou escrever e que, por isso, não podiam votar. 

ELIANE: Uma guerra em que era preciso construir trincheiras, as escolas, para abrigar 6 milhões de crianças e 12 milhões de adolescentes. 

SUMAIA: E que queria derrubar os obstáculos que deixavam 99% da população bem longe das universidades, e a produção científica embaixo de escombros.

ELIANE: Batalhas travadas para ensinar e aprender a ler muito mais do que palavras.

VINHETA DE ABERTURA DO PODCAST 🎶

ELIANE: Primeira temporada Futuro Interrompido

JOÃO GOULART: o povo quer que se amplie a democracia, que a todos seja facilitado participar da vida política através do voto, podendo votar e podendo ser votado. 

SUMAIA: Estamos de volta ao discurso do presidente João Goulart no comício da Central de Brasil, de 13 de março de 1964.

ELIANE:  Votar e ser votado. Os analfabetos não podiam interferir na vida política do país. Mudar essa regra era uma entre as propostas das reformas de base. 

JOÃO GOULART:  Refiro-me à reforma eleitoral, à reforma ampla que permita a todos os brasileiros maior de 18 anos também ajudarem a decidir os seus destinos.

SUMAIA: O direito ao voto não vinha sozinho. Era preciso acessar a cidadania não só escolhendo governantes. O analfabetismo não era só um obstáculo ao voto, mas à própria dignidade dos brasileiros.

ELIANE: Dois dias depois desse discurso, foi enviada ao Congresso Nacional a mensagem presidencial destrinchando as reformas de base e outras propostas do governo para a educação. 

SUMAIA: Já vamos começar com um debate super atual: o projeto estabelecia um investimento mínimo na educação que seria o equivalente a 12% do PIB pelo governo federal e de 20% do orçamento de estados e municípios.

EFEITO SONORO 🎶

ELIANE: Foi uma luta enorme para o Plano Nacional de Educação, que vai até este ano, colocar como meta 10% do PIB. E olha, não estamos nem perto disso.

EFEITO SONORO 🎶

SUMAIA: Pra contar algumas das propostas do governo que estavam nessa mensagem presidencial, tivemos a ajuda de pessoas com quem a gente cruza no cotidiano. Juntamos o povo de hoje com a política de ontem, nesse exercício. E o pessoal topou fazer a leitura:

TRILHA DO PODCAST 🎶

ROSÂNGELA: tornar o ensino primário obrigatório e universal 

GIRLENO:  ensino primário, de 4 anos, para toda a população em idade escolar. 

RUBENS:  incremento de mais de dois milhões de vagas, em nossa rede de escolas primárias.

ANTONIO:  suplementação dos salários de 120 mil professores .

ROSÂNGELA: instalação, em todos os municípios brasileiros, de escolas de ensino de grau médio. 

UÊNIA:  educação sistemática para os 12 milhões de adolescentes brasileiros. 

JOSELY: ampla mobilização para alfabetizar mais de 5 milhões de brasileiros 

RUBENS: reformulação dos currículos universitários. 

GIRLENO: duplicação de matrículas no primeiro ano dos cursos de nível superior.

TRILHA DO PODCAST 🎶

SUMAIA: Essas gravações que você acabou de ouvir só foram possíveis porque todas essas pessoas tiveram a oportunidade de serem alfabetizadas. Aprenderam a ler. Algumas com mais dificuldade. Outras com maior fluência. Mas aprenderam. 

ELIANE:  Naquela época, a taxa de analfabetismo era de 46%. 

LIA FARIA: Só existia público, de graça, o primeiro segmento de ensino fundamental, que se chama primário. 

SUMAIA: 41% da população só ia até o que chamamos hoje de primeira fase do fundamental. Juntando com os analfabetos, temos aí quase 9 em cada 10 brasileiros.

ELIANE:  Lia Faria volta a desenhar o quadro da época, com a ajuda de suas próprias memórias da escola.

LIA FARIA: Eu fiz, inclusive, o primário numa escola pública, em que eu me lembro que na escola inteira só tinha uma aluna negra que era muito minha amiga, a Zélia, que era filha de um porteiro aqui perto. Depois, quando você acabava o antigo Admissão, que era o quinto ano, não existiam ginásios públicos. Não existia nenhum ginásio público no Brasil inteiro. 

SUMAIA: E pras etapas seguintes o funil era ainda mais impressionante. Escolas de ensino médio públicas com autorização formal para funcionar eram 2.300, particulares 4.200. A grande maioria delas de cursos profissionalizantes, como agricultura, artes domésticas, polícia civil, curso normal para formar professores do ensino fundamental.

ELIANE: A professora Lia conta como ela conseguiu fazer o ginásio, o nome que era dado ao que hoje são os anos finais, do sexto ao nono ano, do ensino fundamental. 

LIA FARIA: Porque o que você tinha de Ginásio? Os Institutos de Educação, algumas escolas técnicas e os Colégios de Aplicação. Tudo pouquíssimo, disputadíssimo e com concurso público. Aí eu tentei o concurso, fui reprovada em matemática, não consegui entrar, fui estudar em uma escola particular privada, o Colégio Anglo Americano.

SUMAIA: A família da Lia podia pagar. Uma minoria. E coloca mais um obstáculo aí:

LIA FARIA: Agora, é interessante contar nesse momento que a Zélia, minha colega, também fez um concurso para o Instituto de Educação.

ELIANE: Zélia, a amiga negra, filha do porteiro. 

LIA FARIA:  Passou brilhantemente, com notas muito melhores que as minhas, só que no final passava por um exame médico. Quando chegou no exame médico, eles rapidamente deram um jeitinho de reprovar a Zélia, porque eles não queriam que no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, que era assim uma esfinge, tivessem negros. Então eles reprovam a Zélia. Essa era a educação do Brasil.

SOBE SOM - TRIBUTO A MARTIN LUTHER KING 🎶

SUMAIA: A mensagem presidencial que você ouviu nas vozes dos nossos convidados agora há pouco foi escrita por Darcy Ribeiro, que era o ministro chefe da Casa Civil. Mas, apesar de Darcy hoje ser reconhecido como um grande conhecedor da sociedade brasileira, as propostas que o governo prometia implementar não saíram simplesmente da cachola. Se lembra da frase de Paulo Freire que abre esse episódio? 

PAULO FREIRE: foi um tempo de muita riqueza, entende? 

ELIANE: Pois bem… Pipocavam pelo país projetos que tentavam ampliar o acesso à educação.

SOM DE RETROCEDER 🎶

SUMAIA: E um deles ganhou especial atenção do presidente da República…

DOCUMENTÁRIO AS 40 HORAS DE ANGICOS: Assim como uma parede é feita de tijolos, um ao lado do outro, assim também se escrevem as palavras. Ninguém soletra B-E, BE. É só juntar os tijolos: Be-Lo-Ta.

ROMÃO: Belota é um enfeite do arreio do cavalo. 

ELIANE: Belota. Esse enfeite que só algumas comunidades poderiam saber o que é, como o professor José Eustáquio Romão, um dos fundadores do Instituto Paulo Freire, detalhou aí, foi o ponto de partida para um projeto de alfabetização de adultos que conseguiu uma proeza.

SUMAIA: O áudio que a gente tocou antes é de um documentário que registrou essa experiência. 

DOCUMENTÁRIO “AS 40 HORAS DE ANGICOS”: Em Angicos, uma pequena cidade no sertão do Rio Grande do Norte, à beira da antiga estrada de ferro, começaram uma revolução. É uma revolução de verdade, séria, bem organizada.  Sua primeira fase durou apenas 40 horas.

ELIANE: O município a quase 200 quilômetros de Natal, no interior do Rio Grande do Norte tinha 9 mil e 500 habitantes. 75% deles vivendo em área rural e mais ou menos a mesma proporção de analfabetos. Foi esse o lugar escolhido para aplicar o sistema de ensino que vinha sendo desenvolvido e que tinha Paulo Freire à frente. E depois das 40 horas, 300 alunos estavam alfabetizados em Angicos.

SOM TIC TAC DO RELÓGIO 🎶

SUMAIA: O método usava a própria realidade do aluno para ensinar. Os alfabetizadores faziam uma pesquisa de campo antes de começar o trabalho dentro de sala de aula. E selecionavam palavras geradoras. Um termo comum, do dia a dia daquela comunidade, que traria sentido para as letras. De novo, Romão explica.

ROMÃO: Eu posso ter uma palavra muito complexa que me dá várias famílias silábicas para eu poder trabalhar o processo tecnicamente, mas essa palavra não tem significado para aquele povo. É tanto que a palavra tijolo, que o pessoal fala tanto nela, ela só foi palavra geradora com os candangos em Brasília. Ela não foi palavra geradora em Angicos. Em cada lugar, as palavras geradoras, 20, 30 palavras, surgem do próprio universo cultural, do alfabetizando e da alfabetizanda.

ELIANE: Eu vou pegar esse gancho do tijolo como palavra geradora dos candangos, em Brasília. Isso me toca especialmente, porque eu sou de uma família candanga. Meu avô não sabia ler. O Romão trabalhou no projeto aqui e contou uma história que transmite bem como funciona esse trabalho integrado com a cultura do estudante.

SUMAIA: A palavra geradora dos candangos era tijolo. Em plena construção da capital federal, né. O tijolo era quase uma extensão do corpo.

SOBE SOM - ROJÃO DE BRASÍLIA 🎶 

ROMÃO: Como sempre ele pediu para o pessoal levar tijolo para a sala de aula os operários cortavam o tijolo em três partes ele colava sílabas nas três partes e depois pedia para o pessoal combinar como eles faziam na parede, as amarrações, para eles combinarem para formar outras palavras. Enfim, estou resumindo o processo.

SOBE SOM - ROJÃO DE BRASÍLIA 🎶

ELIANE: Aí tinha uma mulher, esposa de um trabalhador. Ela tinha pedido para assistir às aulas.

ROMÃO: O pessoal montou várias palavras, como giló, gilal, enfim, as palavras que era possível montar com aquelas sílabas lá, do tatetitotu, jajéjijonjul, aleéjojú de tijolo e uma mulher que participava não lembro o nome dela lá pelas tantas ela falou assim e bateu assim na cabeça: “consegui”. E ela tinha escrito uma frase com as sílabas: tu já lê. Que era “tu já lês”. Uma coisa emocionante. Quer dizer, é aquilo que a gente chama na alfabetização, na hora que dá o estalo. É a hora que a pessoa percebe a estrutura da língua. 

SUMAIA: Agora voltando pra Angicos. Sabe o que é frisson? Comoção, mesmo? Foi o que a tal proposta de educação provocou. 

SOM DE FALATÓRIO

ELIANE: Havia tanta expectativa em torno daquela experiência que até o presidente da república, o Jango, apareceu na formatura dos novos leitores e eleitores de Angicos. Uma turma formada basicamente por camponeses. A formatura foi no dia 2 de abril de 1963. Exatamente um ano antes do golpe.

DOCUMENTÁRIO “AS 40 HORAS DE ANGICOS”: Seu Antônio tem 51 anos. Na aula de encerramento, sentiu-se capaz de fazer um discurso de improviso e falou para o presidente da república. Viva o Brasil, que está matando a nossa fome da cabeça. 

SUMAIA: A experiência de Angicos serviu como referência para a elaboração do Plano Nacional de Alfabetização, assinado em janeiro de 1964. Maria Valéria Rezende era uma jovem religiosa da congregação das Cônegas Regulares de Santo Agostinho e fazia parte da equipe que ia implantar o programa.

MARIA VALERIA: A ideia era a seguinte, você treina os estudantes secundaristas e universitários para alfabetizar com o método proposto pelo Paulo Freire, e depois interrompe-se durante um semestre as aulas dos cursos secundários e das universidades e os estudantes iriam seis meses pro campo alfabetizar os trabalhadores. 

ELIANE: O Plano Nacional de Alfabetização previa a criação de 60 mil círculos de cultura em todo o país e prometia alfabetizar, ainda em 1964, mais de 1 milhão e 800 mil pessoas. 

SUMAIA: No nosso mundo tão voltado para o sucesso pessoal, pode ser difícil pensar que milhares de estudantes iam dar um tempo na própria formação para ensinar adultos pobres a ler e a escrever. Mas essa era considerada uma missão nacional. 

ELIANE: E atraía gente como Maria Valéria Rezende. Desde então, ela se apresenta como educadora popular, mas hoje ela é mais conhecida como escritora mesmo. São mais de 20 livros publicados e dois prêmios Jabuti.

SUMAIA: Mas o episódio de Angicos chamou a atenção, também, de pessoas com outros interesses…

BARULHO DE CASCAVEL 🎶

ELIANE: Com a visita de Jango ao projeto, foram junto várias autoridades. Um deles era o comandante do IV Exército, atual Comando Militar do Nordeste.

SUMAIA: O jornalista e secretário de educação do Rio Grande Norte naquela época, Calazans Fernandes, relatou um diálogo com o comandante no livro “40 Horas de Esperança”. 

LEITURA DO LIVRO: A saída, quando o grupo já se dispersava à procura de carros para o regresso a Natal, o general me chamou e disse: -  meu jovem, você está engordando cascavéis nesses sertões. Ao que respondemos: - depende do calcanhar onde elas mordam, general.

BARULHO DE CASCAVEL 🎶

ELIANE: Esse general era Humberto de Alencar Castello Branco.

SUMAIA: Você ouviu direito. Castello Branco, o mesmo que viria a ser o primeiro presidente da ditadura.

TRILHA SONORA DO PODCAST 🎶

ELIANE: Outros projetos também enfrentavam o problema da educação nessa época.

SUMAIA: Antes de Angicos, Paulo Freire já tinha atuado no Movimento de Cultura Popular, o MCP, projeto criado em 1961 por intelectuais e artistas pernambucanos. Foi lá que começou a ganhar corpo a pedagogia que o colocou entre os grandes pensadores do mundo. 

PAULO FREIRE: O que eu estava buscando era exatamente caminhos através dos quais, o alfabetizando pudesse se apoderar criticamente do próprio processo de alfabetização, como um ato criador, como um ato de criação. 

ELIANE: Esse áudio é de uma série de entrevistas que foi ao ar em 1989, pela rádio MEC. 

SOBE SOM MARACATU 🎶

SUMAIA: O MCP misturou música e dança da cultura popular com um programa inovador de alfabetização. O ex-prefeito de Olinda e depois secretário de cultura do governo de Miguel Arraes, Germano Coelho, falou sobre o projeto nessa série da rádio MEC.

GERMANO COELHO: uniu povo, intelectuais, estudantes, num amplo movimento, que não era apenas por escola, mas era um movimento de cultura. Cultura concebida como um instrumento para a emancipação do nosso povo. 

ELIANE: Entre os projetos estava a alfabetização de adultos. O livro de leitura para adultos era uma cartilha que trazia logo na primeira lição duas palavras: povo e voto. Mas na lição 76 já apresentava a família de dígrafos do CRA, CRE, CRI, CRO, CRU e que estavam presentes em palavras como escravo, credo, lucro e crise. 

SONS DE FICHA CAINDO E DE LÁPIS NO PAPEL 🎶

SUMAIA: Nessa mesma época, em Natal, no Rio Grande do Norte, o Ministério da Educação e a prefeitura colocaram em prática um projeto piloto para construir escolas nas periferias da cidade. Um filme da época guardou os registros do projeto De Pé no Chão Também Se Aprende a Ler. O registro é antigo e o áudio tem algumas falhas  

DOCUMENTÁRIO “DE PÉ NO CHÃO TAMBÉM SE APRENDE A LER”: Para quatro milhões de crianças brasileiras de 7 a 12 anos, não existem escolas. Enquanto se espera que surjam essas escolas, decidiram os responsáveis pelo programa inaugurar em Natal uma experiência diferente. Em cada pedaço de favela, em cada canto de praia, os voluntários dessa cruzada vão hoje plantando acampamentos-escola.

ELIANE: Os acampamentos-escola não eram construções definitivas. O economista e ativista dos direitos humanos, Roberto Monte, que cuida do acervo onde encontramos o documentário, era criança na época do mutirão, mas conta de uma reunião que ficou famosa na cidade quando foi decidido usar palha. 

ROBERTO MONTE: Quando chega na hora do pega-pá-ca-pá, como é que vai fazer a educação sem grana? E houve uma famosa reunião no bairro das Rocas. As Rocas é um bairro proletário, muitos portuários. Todo mundo discutindo lá, aí alguém diz lá por trás, como é que ele vai fazer? Eu disse, faz de palha de coqueiro. E os pescadores lá da Rocas tinham esse tipo de coisa. 

DOCUMENTÁRIO “DE PÉ NO CHÃO TAMBÉM SE APRENDE A LER”: O importante é que essas crianças aprendam a ler, a escrever e a contar. Agora. Enquanto esperam que se construam escolas. 

SOM DE SINO ESCOLAR DO DOCUMENTÁRIO 🎶

SUMAIA: Em 1964, todas as crianças de Natal estavam matriculadas. O prefeito de Natal era Djalma Maranhão e o secretário de Educação, Moacyr de Góes. De novo, Paulo Freire. 

PAULO FREIRE: E o Moacyr de Góes, muito moço naquela época, ao lado do Djalma Maranhão, e com o Djalma, programou um trabalho lindo olha, eu te digo,pra mim foi uma das coisas assim mais sérias na história da educação brasileira.

ELIANE: Com o golpe, o projeto foi desativado, Moacyr de Góes foi preso no dia 1o de abril mesmo e Djalma Maranhão no dia seguinte.  

DOCUMENTÁRIO “BRIZOLETAS”: plano de escolarização fez as escolas surgirem aos milhares, brotando padronizadas e acolhedoras em todos os quadrantes do estado.

SUMAIA: No Rio Grande do Sul, o plano de alfabetização implantado a partir de 1957  adotou estratégia parecida. Mas ao invés de palha, madeira.  

SOM DE MADEIRA E MARTELO 🎶

DOCUMENTÁRIO “BRIZOLETAS”: este é o maior esforço na al em matéria de educação popular. Grande vitória. Nenhuma criança sem escola no Rio Grande do Sul.

ELIANE: O governador era Leonel Brizola e as escolas de dois ou três cômodos ficaram conhecidas como brizoletas.

SUMAIA: Agora a gente faz uma observação importante.

SOM DE CAMPAINHA 🎶

ELIANE: Esses projetos eram emergenciais e transitórios, diante do índice altíssimo de crianças fora da escola, de analfabetismo. A construção de escolas de estruturas precárias está, nesse caso, dentro de um contexto muito específico. E a gente não entra no mérito se era a melhor escolha como política pública. Mas isso não deve ser confundido com a defesa das escolas de estrutura inadequada que temos até hoje no país. Porque sabemos que isso interfere na qualidade do aprendizado e, bom, na própria dignidade daquela comunidade.

SOM DE CAMPAINHA 🎶

SUMAIA: Na outra ponta do ensino, o superior, também estavam em curso mudanças importantes, parte delas expressamente incluídas nas reformas de base.

ELIANE: E essa é a deixa para mais um personagem super importante nessa história. O Anísio Teixeira. 

SUMAIA: Mesmo quem não sabe quem ele foi já ouviu esse nome antes… lembrou aí?

SOM DE CAMPAINHA 🎶

SUMAIA: Anísio fundou uma instituição que hoje leva o nome dele. O INEP. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Sabe, a entidade responsável pelo ENEM? 

ELIANE: Bom, lá atrás, na construção de Brasília, o então presidente Juscelino Kubitschek, transferiu para Anísio a responsabilidade de construir um novo modelo de universidade para a nova capital do país. 

SUMAIA: Anísio chama um jovem antropólogo, conhecido pela ousadia, para dividir a tarefa: Darcy Ribeiro. Juntos, eles começam a dar forma a essa proposta que viria a ser a UNB, a Universidade de Brasília. 

DOCUMENTÁRIO “UNB: PRIMEIRA EXPERIÊNCIA EM PRÉ-MOLDADO”: O campus da universidade de brasília, situado em local privilegiado no setor norte da cidade, vem sendo construido visando atender suas necessidades.  

ELIANE: Esse é o trecho de um documentário que registrou a construção dos primeiros prédios da UNB em 1962. O filme foi finalizado em 1970. 

LIA FARIA: ela é totalmente diversificada. Não era aquela antiga universidade dos professores acadêmicos, também uma universidade muito fechada, com aqueles titulares que eram os donos da cátedra, desaparecia aquela coisa da cátedra do professor catedrático. 

ELIANE: De novo a Lia Faria, professora da Educação da UERJ e conselheira da Fundação Darcy Ribeiro. 

LIA FARIA: A ideia eram cursos mais livres, cursos que tivessem o início de uma formação geral muito grande e que o aluno pudesse ir escolhendo como ele ia montando o seu curso. É uma ideia super arrojada, que vem do Anísio Teixeira, que vem do Darcy Ribeiro, e o Darcy convida só pessoas brilhantes, não só do Brasil, mas do mundo inteiro, para serem os professores daquela nova universidade, uma universidade do futuro, uma outra composição, negando até então aquela universidade que havia de poucos, com aqueles catedráticos, que era fechada inclusive no seu corpo de professores. 

SUMAIA: A UNB foi inaugurada em 1962. No dia 21 de abril. Praticamente dois anos antes do golpe. 

ELIANE: Bom…Em 1962, Anísio Teixeira também fazia parte do Conselho Federal de Educação e foi protagonista na elaboração do Plano Nacional de Educação e o projeto da UNB era a referência da reforma universitária dentro das Reformas Estruturais de Base. 

SUMAIA: E lá vamos nós de volta ao comício de 13 de março.

SOM DE RETROCEDER 🎶

JOÃO GOULART: Também está consignada nesta mensagem a reforma universitária, reclamada pelos estudantes brasileiros. Reclamada pelos universitários, que sempre tem estado corajosamente na vanguarda de todos os movimentos populares nacionalistas.

ELIANE: A  mensagem encaminhada ao  Congresso Nacional dois dias depois definia o seguinte

LEITURA MENSAGEM CONGRESSO:

 — É assegurada ao professor de qualquer dos níveis de ensino plena liberdade docente no exercício do magistério. 

— As Universidades, no exercício de sua autonomia, cab  erá regulamentar os processos de seleção, provimento e acesso do seu pessoal docente, bem como o sistema departamental. 

 — É abolida a vitaliciedade da cátedra, assegurada aos seus titulares a estabilidade, na forma da lei. 

SUMAIA: Agora, o que danado é cátedra? Lia Faria ajuda a explicar… 

LIA FARIA: Você fazia um concurso para catedrático e era catedrático até morrer. Aquele lugar era seu, ninguém tascava. E você indicava os seus sucessores. Só para te dar um exemplo, na área da história, antiga na Faculdade Nacional de Filosofia, que foi um grande foco de resistência pelos alunos, extremamente politizado, o professor Hélio Viana, que era uma pessoa de direita super conservadora, era o dono da cátedra da história do Brasil. Ou seja, nenhum outro professor podia dar a história do Brasil. A Maria da Leite Linhares, quando entrou, ela era proibida de dar a história do Brasil. Aí ela vai para a história geral, vai fazer uma tese sobre o Egito, porque não tinha muita alternativa. 

ELIANE: Mas como já deu pra perceber, esse formato de universidade, com suas catedrais e catedráticos não existe mais. É que depois do golpe houve mesmo uma reforma universitária. 

SUMAIA: É, o sentido de modernização era também um norte importante para os militares que assumiram o poder. O professor Rodrigo Patto, da Universidade Federal de Minas Gerais, explica que não existe uma contradição, mas entendimentos diferentes do que é modernização.

RODRIGO PATTO: Os militares logo abraçaram a ideia de fazer uma reforma universitária e ele aproveitaram muito as ideias anteriores, que vinham do período João Goulart, como aumentar a verba para pesquisa, criar a pós-graduação, racionalizar as estruturas das universidades com a criação de instituto de pesquisa, com o fim - a extinção - das cátedras e a criação de departamentos no lugar das cátedras. A diferença é que a ditadura fez tudo isso de maneira autoritária, vinha de cima para baixo, e também de uma maneira combinada com repressão. Houve muitos expurgos, muitos professores e pesquisadores foram demitidos, foram proibidos de trabalhar, proibidos de receber bolsa de pesquisa… Então a reforma universitária que a ditadura implantou foi muito pior do que teria sido num contexto democrático, né?

ELIANE: Em 1963, o número de jovens matriculados em universidades era de pouco mais de 100 mil estudantes. 1%. Apenas 1% dos jovens brasileiros.

SUMAIA: Hoje, um em cada quatro jovens de 18 a 24 anos frequenta ou já concluiu o ensino superior. São quase 9,5 milhões de matrículas. A ditadura terminou com mais ou menos 1 milhão e 400 mil matrículas, número de 1984.

ELIANE:  Bom… saltando de volta para a ponta inicial da educação, com o golpe de 1964, o decreto que tinha criado o Plano Nacional de Alfabetização foi anulado no dia 14 de abril. Já Paulo Freire foi preso no dia primeiro de julho acusado de atividades subversivas.

SUMAIA: Voltamos à entrevista de Paulo Freire para a rádio MEC. Ele fala daquele movimento lá de Pernambuco, onde começou a desenvolver a prática com alfabetização de adultos. 

PAULO FREIRE: e com o golpe de 64, o MCP foi considerado como uma sede de subversão. Eu me lembro ainda de que eu já, na cadeia, andei lendo notícias dos jornais do Recife, na época, falando de que se havia encontrado um sem número de fardas para guerrilheiros do MCP. Um absurdo. 

MARLENE BLOIS: E tinha isso, Paulo?

ELIANE: A entrevista foi feita pela jornalista Marlene Blois quatro anos depois de Paulo Freire voltar do exílio.

PAULO FREIRE: Nada disso. 

MARLENE BLOIS: As armas quais eram? 

PAULO FREIRE:  Poxa, eram estritamente culturais e pedagógicas. Posso te afirmar isso. 

PAULO FREIRE: Não encontraram revólveres, nem sequer baladeira, badocas. Não tinha nada disso.

ELIANE: Num país em que educação não era um direito, abrir escolas, contratar professores e alfabetizar trabalhadores parecia mesmo um arsenal mais perigoso que fuzis ou tanques de guerras… 

SOM DE TANQUE DE GUERRA 🎶

SUMAIA: O golpe também atingiu centenas de estudantes que revelassem qualquer possível alinhamento ou crítica ao novo regime. E nessa parte da história a gente já sabe bem o que aconteceu, né?

SOBE SOM: MÚSICA CÁLICE 🎶

ELIANE: Valéria teve mais sorte. No dia do golpe ela estava em uma missão da Igreja Católica no Uruguai. E não acreditou no que estava acontecendo no Brasil.

MARIA VALÉRIA: Nós éramos muito entusiasmados e acreditávamos que tudo isso ia dar certo e que o Brasil estava mudando, e mudando para melhor, e que tudo isso ia acontecer. Só depois é que eu fui tomando consciência de que era verdade, era um golpe de direita e a coisa era feia, era séria.

SUMAIA: Valéria seguiu no exílio por quase dois anos. Mas decidiu voltar para casa. E a jovem freira passa a colocar em prática uma forma de resistência que ainda hoje passa despercebida. Mas que não deixa de ser uma guerrilha - só que bem longe da luta armada.

MARIA VALÉRIA: Então, nós sabíamos que isso não ia funcionar e que, pelo contrário, era preciso se dedicar, inserir-se no meio do povo, desaparecer no meio do povo, virar fermento na massa, e daí fazer um longo trabalho de conscientização popular.

ELIANE: Desaparecer no meio do povo. Virar fermento na massa.  

SUMAIA: E sabe como a Valéria fez pra seguir aplicando a pedagogia que ela tinha aprendido com Paulo Freire? Se infiltrou no sistema de ensino que foi criado pelos militares para substituir o plano nacional de alfabetização. Ela foi dar aulas no Mobral.

ELIANE: Mobral. Sigla para Movimento Brasileiro pela Alfabetização

MARIA VALÉRIA: Na verdade, a técnica de alfabetização que o Mobral adotou era a mesma técnica que a gente utilizava no método Paulo Freire. Ou seja, você pega uma palavra-chave, desmonta essa palavra em sílabas, depois desenvolve com a família das sílabas e vai formando novas palavras com essas sílabas das famílias das sílabas. Isso era igual. Só que na metodologia do Mobral, você só fazia isso, você pegava a palavra, desmontava em sílabas, essas sílabas você fazia, pegava a família, cada sílaba tinha a sua família, depois você começava a juntar as sílabas para fazer novas palavras e ponto. A gente fazia a mesma coisa, só que a gente fazia toda uma discussão a partir da palavra-chave e das outras palavras que o pessoal ia criando e perguntava como era a vida deles, qual era a relação daquilo com a vida deles, como era no cotidiano, e você fazia o trabalho de alfabetização. Então, para quem olhasse de fora e só visse o professor lá com o seu material, o cartaz, desmontando sílabas, não sabia o que você estava conversando, entendeu?  

SUMAIA: E mais de 60 anos depois, o educador e sua proposta pedagógica continuam sendo tratados por muita gente como ameaça mais perigosa que muito arsenal de guerra.

MARIA VALÉRIA:   Justamente porque a filosofia e a ação educativa dentro da filosofia do Freire cria espíritos críticos e ajuda o pobre a saber que ele não é besta, porque muitas vezes se justifica a injustiça social, a desigualdade econômica e tudo isso, com uma mentalidade meritocrática. Você é pobre porque você é besta, porque você é preguiçoso, enquanto que toda a ação educativa orientada pelo pensamento freiriano ajuda a desmentir essa falácia. E na hora que você e que o povo descobre que ele não é besta e que ele não é preguiçoso, que ele está sendo vítima de uma estrutura social opressora e exploradora e que ele pode, se juntando com os outros, agir e mudar essa realidade, aí a coisa muda.

TRILHA DO PODCAST 🎶

ELIANE: Já olhando para os números, o analfabetismo é hoje um problema menos presente, embora ainda exista no Brasil, com uma taxa de menos de 6% da população. Um grande desafio atual é o analfabetismo funcional.

SUMAIA: Existe um indicador baseado no domínio que as pessoas de 15 a 64 anos têm da leitura, escrita e operações matemáticas, independente de sua escolaridade. É o Inaf, Indicador de Analfabetismo Funcional. Em 2018 era de cerca de 20%, mas já foi bem maior.

ELIANE: Então a pessoa até sabe ler e escrever, mas tem dificuldade de entender aquilo, sabe? Como ironia. Interpretação de texto… agora olhando pro método pensado antes, de integração da alfabetização com a leitura de mundo da pessoa, e o que foi implantado, será que existe relação?

ROMÃO: Não tenho dúvida.

SUMAIA: Romão, como você ouve aí, é taxativo. Lia argumenta.

LIA FARIA:  Durante o período militar, que você fala dessas iniciativas educacionais, que de fato existiram, porque toda a ideia de desenvolvimento no Brasil é marcada por essa coisa do desenvolvimentismo, do progresso. E a industrialização ficando cada vez mais sofisticada, era preciso pelo menos alfabetizar a população. 3515 E o que eles fazem? Introduzem uma visão totalmente tecnicista, tecnológica, e esvaziam a parte humanística. E aí inventam aquelas coisas de moral cívica, umas disciplinas que existiam para formar a cabeça dos estudantes.

ELIANE: Em termos de investimento, no apagar das luzes da ditadura, um levantamento do Banco Mundial mostrou que o Brasil era o país da América Latina que menos investia em educação, o equivalente a 6,5% do PIB.

SUMAIA: Sem investimentos, a rede pública foi precarizada e o acesso à escola passou a ser uma tarefa da iniciativa privada, não mais da educação pública.

ELIANE: Diante de tudo isso, a gente pode dizer que seria diferente se não tivesse ocorrido o golpe? É difícil saber. Mas podemos seguir evidências dos projetos que existiam aqui e que foram aplicados em outros países por Darcy Ribeiro e Paulo Freire, exilados durante a ditadura.

ROMÃO: Não existe história do ser, se tivesse acontecido... Eu tenho uma hipótese muito forte a partir dos testemunhos que eu tenho de outros países que aplicaram. É a contraprova para mim. 

SUMAIA: O Romão fala desses casos. 

ROMÃO: O Darcy expulso do Brasil  fez a reforma universitária no Uruguai. Uma das melhores da América Latina, é a Universidade da República do Uruguai, baseada no modelo brasileiro da Universidade Brasília. Fez a reforma no Peru, universitária. Esse modelo de universidade inovadora, que vingou no mundo, a matriz é a Universidade de Brasília original.

ELIANE: Ou o trabalho do Paulo Freire no Chile.

ROMÃO: O Chile inteiro passou pela experiência dos círculos de cultura e alfabetizou a população do Chile todo. Praticamente todo. No método Paulo Freire. 

SUMAIA: Depois deu aula em Harvard e atuou em vários países da África. Influenciou até na Coreia do Sul.

ROMÃO: Era um país miserável, arrasado, oprimido, destruído pela Segunda Guerra Mundial e destruído por uma guerra que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Um dos países que tinham um dos problemas de educação mais graves do mundo e de miséria, porque o analfabetismo nunca anda sozinho. A Coreia resolveu o seu problema numa geração usando o método Paulo Freire. Eu não acreditava nisso. Eu fui para a Coreia ver isso. Eles adotaram mesmo. Então, a contraprova, para mim, demonstra que a gente pode falar do se: se tivesse acontecido o círculo de cultura, se o golpe fosse dado de acordo com o que os conspiradores estavam planejando, que era para muito mais tarde, o golpe não teria ocorrido, na minha opinião. Porque os círculos de cultura teriam politizado o país, e haveria resistência.

BARULHO DE CASCAVEL 🎶

ELIANE:  É… parece que o Castello Branco tava certo. Estavam engordando cascavéis. Que morderiam as canelas do golpe.

TRILHA DO PODCAST 🎶

SUMAIA: E você ouviu o que o Romão falou? O analfabetismo nunca anda sozinho. Porque geralmente tá de mãos dadas com a pobreza.

ELIANE: É nossa deixa para o próximo episódio. Vamos falar das medidas econômicas previstas nas reformas de base. Em especial duas, que têm tudo a ver com arrecadação de impostos, capacidade de investimento público, circulação de dinheiro e geração de riquezas no Brasil.

MARCO ROCHA: quer dizer a possibilidade de uma maior homogeneização social da população brasileira e essa homogeneização  seria o que formaria justamente uma classe média, numerosa, de moldes típicos de países industrializados.  

SUMAIA: Vem aí a reforma fiscal e a estatização de refinarias de petróleo pelo governo João Goulart.

TRILHA SONORA DOS CRÉDITOS 🎶

SUMAIA: Futuro Interrompido é a primeira temporada do podcast Perdas e Danos. Essa é uma produção original da Radioagência Nacional, veículo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

ELIANE: Toda quinta-feira a gente solta mais um episódio da temporada, então já salva nosso perfil e não esquece de usar a ferramenta de avaliação da plataforma se você gostou do que ouviu até aqui.

SUMAIA: Esse podcast é idealizado e narrado pela Eliane Gonçalves e por mim,  Sumaia Villela. A concepção de pauta da primeira temporada é dela e eu desenhei a segunda temporada.

ELIANE: A nossa dobradinha segue em todas as etapas do projeto: pesquisa histórica, produção, entrevistas, roteiro, montagem e pós-produção no geral.

SUMAIA: Contamos, ainda, com a participação de Fran de Paula. Ela também produz, entrevista, contribui com enfoques.

ELIANE: A edição, parte da montagem e divulgação nas plataformas é da Beatriz Arcoverde. 

SUMAIA: A identidade sonora do podcast e a sonoplastia do episódio é de Jailton Sodré e foi feita a partir das composições gentilmente cedidas pelo Nelson Lin, nosso colega aqui na EBC. O Nelson também interpretou os trechos da música Cartas Celestes 2, do Almeida Prado, que aparecem na abertura e aqui no encerramento.

ELIANE: Já a identidade visual e a arte são assinadas pela Caroline Ramos.

SUMAIA: A vinheta do podcast tem as vozes de Marli Arboleia e Sayonara Moreno em destaque.

ELIANE: Luís Cláudio Ferreira faz a leitura do trecho da mensagem do congresso. E Pedro Rafael Vilela narra texto do livro 40 horas de esperança.

SUMAIA: A versão do episódio em Libras, divulgada no YouTube, é feita pela equipe da EBC.

ELIANE: Usamos material histórico do acervo da EBC, do Arquivo Nacional e do DHnet - Rede de Direitos Humanos & Cultura. Também usamos, com fins jornalísticos, trechos das músicas Tributo a Martin Luther King de Wilson Simonal, Rojão de Brasília, de Jackson do Pandeiro e Cálice, do Chico Buarque, interpretada na peça Calabar pelo grupo de Teatro do Colégio Cave de Juiz de Fora.

SUMAIA: Agradecemos a Fabiano Azevedo, Fábio Albuquerque, Adriana Ribeiro e Bárbara Barbosa pela ajuda com contatos, pesquisas e informações, e às pessoas que toparam contribuir com esse episódio lendo os projetos para educação de 1964: Josely Bertoldo, Girleno Coelho, Antonio Nascimento de Jesus, Rosângela Gonçalves, Rubens Fernandes da Silva e Maria Uênia da Silva

ELIANE: E principalmente obrigada a você que nos ouviu até aqui. Se puder tirar um tempinho para contar o que achou do podcast, agradecemos muito.

SUMAIA: Por favor, deixe uma mensagem em ouvidoria@ebc.com.br ou no site ebc.com.br/ouvidoria. Também dá para fazer uma manifestação em Libras para o número (61) 99862-1971

Sobe som 🎶  

Em breve
 

Concepção, idealização e narração

Eliane Gonçalves e Sumaia Villela
Pesquisa histórica, produção, entrevistas, roteiro, montagem e pós-produção no geral. Eliane Gonçalves e Sumaia Villela 
Produção, pesquisa, entrevistas e apoio Fran de Paula
Edição, montagem e coordenação dos processos

Beatriz Arcoverde

Identidade visual e design:

Caroline Ramos

Interpretação em Libras: Equipe EBC
Implementação na Web:

Beatriz Arcoverde

Identidade sonora e a sonoplastia Jailton Sodré
Trilhas Nelson Lin
Narrações  Luiz Cláudio Ferreira e Pedro Rafael Vilela
Destaques de vozes na vinheta do podcast Marli Arboleia e Sayonara Moreno
Trilha de abertura e encerramento Nelson também interpretou os trechos da música Cartas Celestes 2, do Almeida Prado, que aparecem na abertura e aqui no encerramento. Obrigada, Nelson!
Agradecimentos

Fabiano Azevedo, Fábio Albuquerque, Adriana Ribeiro e Bárbara Barbosa pela ajuda com contatos, pesquisas e informações, e às pessoas que toparam contribuir com esse episódio lendo os projetos para educação de 1964: Josely Bertoldo, Girleno Coelho, Antonio Nascimento de Jesus, Rosângela Gonçalves, Rubens Fernandes da Silva e Maria Uênia da Silva e a toda a equipe do Acervo da EBC

   
   
   

 

Quer saber mais sobre o tema? Confira o Caminhos da Reportagem, produzido pela  TV Brasil e a série de reportagens e entrevistas da Agência Brasil. 

 

 

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