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Saúde

Sala de Vacina: como a imunização mudou o Brasil e o mundo

Novo podcast marca os 50 anos do Programa Nacional de Imunizações
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Tâmara Freire - repórter da Rádio Nacional
18/09/2023 - 06:01
Rio de Janeiro
Banner de capa para a Radioagência do podcast Sala de Vacina - episódio 1 - Da Vaca
© Caroline Ramos - Arte/EBC

"Se tem uma coisa mais brasileira do que samba e futebol, é a marquinha da vacina BCG no braço".

É com essa frase que o podcast Sala de Vacina começa uma jornada em cinco episódios para entender como a vacina mudou o mundo e o Brasil, e virou parte da nossa identidade nacional.

A série original da Radioagência Nacional e do jornalismo da Rádio Nacional marca os 50 anos do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que faz aniversário neste 18 de setembro.

Além de ser direcionado ao ouvinte final, as rádios podem baixar o conteúdo e incluir em suas programações.

A cada segunda-feira, você vai conhecer como a vacina funciona e que doenças já conseguiu erradicar, como o nosso país passou da histórica Revolta da Vacina para ser referência mundial em imunização - e por que as taxas de cobertura vacinal  aqui no Brasil vêm caindo anualmente, além de entender como os profissionais da área estão tentando mudar esse quadro.

No primeiro episódio, Da Vaca, a jornalista Tâmara Freire conta como bovinos, ordenhadeiras infectadas com varíola e um menino de 8 anos se juntam ao médico Edward Jenner, em 1796, na história da primeira vacina do mundo.

O vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, Renato Kfouri, explica o princípio geral da vacina que foi descoberta nessa ocasião, e que até hoje vem mostrando resultado para outras tantas doenças.

"As vacinas foram desenvolvidas, todas elas, independente da sua tecnologia, com o mesmo intuito: estimular o nosso sistema imunológico, as nossas defesas a produzir os anticorpos, sem que isso cause a doença na pessoa. Ou seja, nós enganamos o nosso sistema imune, apresentamos a ele algo que se pareça com o agente causador da doença, para que estimule uma resposta. Para quando nós encontrarmos de fato esses microrganismos na vida real, nós já estejamos com uma resposta imune para não adoecer. Ou adoecer de forma mais leve".

Essa "atriz" fez longa carreira, erradicou a varíola do mundo todo na década de 1970 e elevou a expectativa de vida das pessoas como nenhuma outra invenção já fez, segundo o médico Guido Levi, que tem um longa carreira em instituições públicas ligadas à vacinação, e atualmente é membro da Comissão Permanente de Assessoramento em Imunizações da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo.

"O Centros de Controle de Doenças dos Estados Unidos publicou, em 1999, uma avaliação com os fatores que mais aumentaram o tempo de vida média da população americana e a diminuição das doenças que causavam problemas sérios nessa população. Vários fatores foram valorizados, mas em primeiro lugar vieram as vacinas. Isso vale para o mundo todo. Para ter ideia, calcula-se que no mundo todo nos últimos 200 anos as vacinas seriam pessoalmente responsáveis por um aumento no tempo de vida média de cerca de 30 anos. Mas isso no Brasil ocorreu num período muito mais curto e mais recente. Em 50 anos, houve um aumento de 30 anos no tempo de vida média da população. Qual foi o fator que desencadeou essa mudança rápida? Eu diria que foi a criação do programa nacional de imunizações".

No Brasil, não foi só a varíola que parou de circular. Com a vacina, o país venceu a poliomielite, doença muito conhecida pela paralisia infantil, que atingia uma em cada 200 pessoas infectadas. Consequência que não era a única nem a mais grave: entre 5% e 10% dos pacientes morriam porque os músculos respiratórios paravam de funcionar. E quando não matava, a pólio colocava crianças em uma máquina batizada de "pulmão de aço", sem previsão de saída, como lembra Guido Levi.

"É uma máquina que fazia respiração dessas crianças, elas entravam para ficar lá dentro até o resto da vida. Eu ainda tive a ocasião de visitar a enfermaria de pulmão de Aço do Hospital das Clínicas e posso dizer que foi uma das coisas mais chocantes que aconteceu na minha carreira profissional. Ver todas essas crianças dentro dessas máquinas, inclusive alguns adultos, mas principalmente crianças, e elas sabiam que nunca saíram de lá. E hoje não tem mais essa enfermaria. Ela foi fechada porque não tem mais nenhum paciente no Brasil no pulmão de aço por causa de pólio. E nós não temos mais crianças com necessidade de muletas e pernas mecânicas causadas pela doença."

O tétano materno e neonatal também parou de circular no país por causa da vacinação. O "mal dos sete dias" provocava a morte de bebês de forma rápida e aguda, com contrações musculares generalizadas. E também a rubéola, outra grave doença que provocava morte ou malformações ainda nos fetos.

O país ainda tinha se livrado do sarampo, mas ele voltou a circular por aqui depois que a cobertura vacinal passou a cair ano a ano. E essa queda não se dá só em relação às doses contra sarampo, mas de forma generalizada.

E esse é o grande desafio da atualidade: retomar as taxas de cobertura vacinal que tornaram o Brasil uma referência mundial. A consultora da Organização Pan Americana de Saúde (Opas), Carla Domingues, explica que o benefício da alta imunização não se limita ao fim das doenças, mas ajuda na assistência a outras doenças não transmissíveis.

"Se hoje nós temos leitos para cuidar de acidentes de trânsito e cuidar de doenças não transmissíveis como câncer, diabetes, é porque a gente não tem mais esses leitos sendo utilizados com doenças imunopreveníveis. Se a gente voltar a ter surto dessas doenças, a gente vai ter um esgotamento do sistema de saúde. Como exemplo, a gente acabou de ver com a covid-19. Essas doenças deixaram de ser tratadas porque a gente tinha que tratar basicamente só covid. A gente vai competir com a gente mesmo, e vamos criar problemas que já foram controlados e podem ser evitados só com vacinação".

Confira a íntegra dessa história no player do topo da página. No próximo episódio, o Sala de Vacina vai traduzir os termos técnicos e processos científicos que envolvem a fabricação de um imunizante e os testes que comprovam sua segurança e eficácia.

 

Episódios já publicados:

  1. Da Vaca: Como a vacina mudou o Brasil e o mundo
  2. Do Frasco: Como é feita uma vacina e porque ela é segura
  3. Do Brasil: Como o país virou exemplo mundial em imunização
  4. Do Oswaldo ao Zé: Da revolta contra a imunização ao amor pelo Zé Gotinha
  5. Da Volta por Cima: Porque as taxas vacinais caíram e como recuperar

 

Acesse o Calendário Nacional de Vacinação e outras informações sobre imunização no SUS na página do Ministério da Saúde.

Você pode conferir, no menu abaixo, conteúdos extras como a histórica declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) que anunciou a erradicação da varíola no planeta. Também é possível acessar a transcrição do episódio, a tradução em Libras e ouvir o podcast no Spotify, além de checar toda a equipe que fez esse conteúdo chegar até você.

PODCAST

SALA DE VACINA

EPISÓDIO 1: DA VACA

[MÚSICA DE ABERTURA]

TÂMARA FREIRE: Se tem uma coisa mais brasileira do que samba e futebol, é a marquinha da vacina BCG no braço.

[CUÍCA]

TÂMARA: É com ela que a gente começa nossa jornada de imunização, rumo a uma vida mais saudável e protegida contra uma série de doenças graves.

Até o fim da infância, cada criança brasileira deve tomar cerca de 30 doses de vacinas diferentes que protegem contra mais de 20 doenças. Mas essa relação não termina aí: adolescentes, idosos, gestantes e até mesmo os adultos têm espaço na caderneta. Sem contar as vacinas sazonais, como a da gripe, e as emergenciais, como foi a da covid-19.

E tudo isso de graça, em mais de 38 mil salas de vacinação dos postos de saúde de todos os municípios do país, além das operações especiais para atender povos indígenas, ribeirinhos e outras pessoas que vivem em locais isolados.

Quem comanda essa orquestra é o Programa Nacional de Imunizações, do SUS, que está completando meio século de vida neste dia 18 de setembro.

Depois de transformar o Brasil em uma referência mundial, o PNI chega aos 50 anos com um grande desafio: frear as quedas contínuas nas taxas de vacinação e retomar o caminho rumo à eliminação das doenças preveníveis por vacinas.

[MÚSICA DE TRANSIÇÃO]

TÂMARA: Eu sou Tâmara Freire, e esse é o podcast Sala de Vacina, uma produção do jornalismo da Rádio Nacional e da Radioagência Nacional, que tá aproveitando a data para contar, em cinco episódios, como é que a gente percorreu esse caminho e chegou até aqui. É a história da vacina no Brasil e do Programa Nacional de Imunizações.

[MÚSICA DE TRANSIÇÃO]

TÂMARA:Eu e muita gente qualificada em saúde pública vamos te explicar o que são as vacinas, como elas agem e porque elas são seguras e eficazes. E vamos tentar entender porque, apesar disso, tanta gente vem deixando de se imunizar. E mostrar as iniciativas que tentam reconquistar a proteção dos brasileiros.

Nesta nossa estreia, vamos começar pelo começo?

[MÚSICA DE TRANSIÇÃO]

TÂMARA: Episódio 1: Da Vaca

RENATO KFOURI: "As vacinas foram desenvolvidas, todas elas, independente da sua tecnologia, com o mesmo intuito: estimular o nosso sistema imunológico, as nossas defesas a produzir os anticorpos, a produzir as células de defesa contra um micro-organismo qualquer, sem que isso cause a doença na pessoa”.

TÂMARA: Esse é o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, Renato Kfouri. Há mais de 25 anos ele se dedica às vacinas e às doenças infecciosas. E como pediatra, ele sabe bem os danos que essas doenças podem causar às crianças

Kfouri explica pra gente o princípio geral da vacina. É como se fosse uma atriz das boas, que faz as nossas defesas pensarem que ela é uma doença de verdade a ponto do corpo produzir o que precisa para acabar com o problema:

KFOURI: “Ou seja, nós enganamos o nosso sistema imune, apresentamos a ele algo que se pareça com o agente causador da doença para que estimule uma resposta. Para quando nós encontrarmos de fato esses microrganismos, esses vírus, essas bactérias na vida real, nós já estejamos com uma resposta imune montada pronta para se defender e não adoecer. Ou quando adoecer, eventualmente, adoecer de forma mais leve".

TÂMARA: E essa atriz começou a carreira há mais de dois séculos. A primeira vacina da história foi criada na Inglaterra por Edward Jenner, em 1796.

Na verdade, a palavra “criar” pode ser um pouco inadequada. Eu explico. Jenner observou que ordenhadeiras de vacas que contraíam varíola animal pareciam imunes à forma humana da doença. Então, ele coletou um pouco de secreção das feridas de uma mulher com varíola bovina e injetou em um menino saudável. O garoto adoeceu, mas se curou rapidamente.

Continuando com o experimento, ele então coletou secreção de uma pessoa com varíola humana e injetou novamente no menino. E aí, um dos maiores milagres da ciência moderna se fez: a criança não ficou doente, porque ela tinha sido imunizada pelo vírus bovino.

[EFEITO SONORO DE IDEIA]

TÂMARA: Aliás, a palavra vacina vem do termo Latim “vaccinae”, que significa “da vaca”.

[MUGIDO]

TÂMARA: Bom, nessa época, a varíola ainda era um dos maiores problemas de saúde pública do mundo. Causada por um vírus do tipo pox, ela provocava febre alta, dores fortes no corpo e na cabeça, e feridas horríveis.

A taxa de mortalidade era de 30%, o que significa que um a cada três infectados morriam pela doença. Se fosse a variação hemorrágica, então, esse percentual podia ser ainda maior.

As primeiras epidemias de varíola foram oficialmente registradas na Europa durante a Idade Média ali pelo Século X. Mas vestígios históricos indicam possibilidades de casos até no Antigo Egito.

Logo, é de se esperar que a novidade descoberta por Jenner se espalhasse e, em 1804, a vacina chegou aqui no Brasil dentro do corpo de africanos escravizados, que foram mandados a Portugal para serem inoculados com o vírus.

[EFEITO SONORO DE PAUSE]

TÂMARA: Pois é, depois da primeira cobaia ser uma criança, agora foram pessoas escravizadas. Infelizmente, muitas inovações científicas foram testadas à revelia em indivíduos desumanizados ao longo da história. Por isso é tão importante a gente defender os processos éticos que temos hoje. Mas isso a gente vai contar nos próximos episódios.

[ EFEITO SONORO DE PLAY]

TÂMARA: Voltando à nossa história: no retorno aqui para o Brasil, a imunização começou a ser feita braço a braço. Ou seja, as secreções de uma pessoa eram injetadas em outras que ainda não tinham tido contato com a varíola. Apenas no final do século XIX é que as autoridades sanitárias começaram a inocular a população com a vacina animal.

Apesar disso, a varíola continuou causando surtos. Só no século XX, mais de 300 milhões de pessoas morreram por causa da doença em todo o mundo. Isso equivale à população inteira do Brasil, somada com a da Argentina e mais a da Colômbia. E olha que naquela época o planeta tinha bem menos gente.

A varíola causou mais mortes do que as três maiores tragédias vividas pela humanidade no século passado: as duas grandes guerras mundiais e o holocausto nazista.

Mas, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, diversos avanços tecnológicos, como a descoberta de produtos conservantes e a possibilidade de transporte das substâncias sem refrigeração contribuíram para a produção de vacinas cada vez mais seguras, eficazes e possíveis de serem produzidas em larga escala.

NARRAÇÃO DE NOTÍCIA: Jornal Folha de São Paulo, 29 de março de 1973. Varíola vai desaparecer em 10 anos

A varíola, que durante milênios afligiu a humanidade, provocando verdadeiras hecatombes, desaparecerá totalmente da terra daqui a 10 anos, anunciou a Organização Mundial de Saúde (OMS). O flagelo será assim destruído pela permanente guerra que os homens vêm efetuando por intermédio da ciência, dos meios de transporte e da disciplina das populações. (...) Em 1967, data do começo da grande ofensiva mundial contra a varíola, havia 2,5 milhões de casos. Em 1972, a cifra baixou para 200 mil.

TÂMARA: E foi assim que, depois de milhares de anos, a varíola parou de matar pessoas, se tornando a primeira doença extinta em todo o mundo graças à vacinação. Em 26 de outubro de 1979, a OMS anunciou em Nairobi, no Quênia, que a última região do planeta estava livre da varíola.

ÁUDIO HISTÓRICO DA OMS: A varíola foi erradicada do nosso planeta. Na América do Sul, o último caso foi reportado no Brasil em 1971. Toda a África, exceto a região do Chifre, ficou livre em 1973. No Sudeste da Ásia, o fim da varíola foi testemunhado em Bangladesh em 1975. E o triunfo final veio há dois anos, neste mesmo dia, quando o último caso de varíola foi descoberto na cidade portuária de Merca, na Somália. No Ano Internacional da Criança, não podemos pensar em um presente melhor para nossos filhos do que libertá-los da doença. E para marcar esse dia histórico, eu gostaria de declarar 26 de outubro como o dia zero da varíola.

TÂMARA: O Brasil conseguiu seu certificado de erradicação um pouco antes, em 1973, o mesmo ano em que o Programa Nacional de Imunização (PNI) foi criado.

NARRAÇÃO DE NOTÍCIA: Jornal o Estado de São Paulo, 27 de janeiro de 1973. Por fim, a varíola passa para a história no Brasil.

Desde o final do ano passado, o Brasil deixou de ser o único país da América Latina a apresentar casos de varíola endêmica. (...) De acordo com o boletim da Campanha de Erradicação da Varíola, dos 451 casos suspeitos em 1972, nenhum diagnóstico foi positivo.

TÂMARA: Paralelamente, o mundo também avançou na produção de vacinas contra outras doenças graves, e felizmente não parou mais.

O princípio das vacinas continua o mesmo, mas a tecnologia segue em evolução constante. O Doutor Kfouri também explica isso pra gente.

KFOURY: "As vacinas originalmente foram desenvolvidas com microrganismos vivos e enfraquecidos atenuados. Assim foi desenvolvida a vacina da varíola, a vacina da pólio oral, a do sarampo. O micro-organismo vírus causador dessas doenças é enfraquecido a ponto de não causar doença e estimular a nossa resposta. Depois vêm as outras tecnologias, utilizando os fragmentos desse vírus ou bactérias: pedaços deles inativados ou mortos, às vezes até uma bactéria inteira inativada. Depois vieram as novas tecnologias, utilizando a engenharia genética, a engenharia recombinante, fazendo com que essa produção, esse estímulo do nosso sistema imunológico, seja cada vez mais específico contra aquela parte agressora do vírus ou da bactéria. E, claro, sempre com muita segurança, não trazendo efeitos colaterais importantes".

TÂMARA: E foi esse acúmulo de mais de 200 anos de pesquisas, somado a um esforço global sem precedentes e facilitado pelas inovações tecnológicas, que permitiu que as vacinas contra o coronavírus fossem criadas e produzidas em tempo recorde.

Acho que o assunto ainda está fresco na cabeça de muita gente, mas não custa lembrar: os primeiros casos de covid-19 surgiram na China em dezembro de 2019.

[TRECHOS DE NOTÍCIAS]

HORA NEWS: A China está em alerta para um novo vírus que causa forte pneumonia, e teria sido espalhado pela contaminação de peixes.

HOJE EM DIA: Organização mundial da saúde quer preparar hospitais de todo o mundo para um misterioso vírus chinês. Os cientistas chegaram à conclusão que o novo coronavírus pode ser transmitido entre pessoas, e não apenas pelo consumo de carne contaminada.

JORNAL HOJE: Agora há pouco a China confirmou que chegou a 17 o número de mortes. Já são quase 500 casos confirmados em todo mundo.

RADIOAGÊNCIA NACIONAL: A doença covid-19, causada pelo novo coronavírus, se tornou uma pandemia. A situação foi assim declarada pela OMS, Organização Mundial da Saúde, nesta quarta-feira, por meio do diretor geral da entidade, Tedros Gebrai Ezzos.

TÂMARA: A Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia no dia 11 de março de 2020, e menos de 9 meses depois, em 8 de dezembro, as primeiras doses estavam sendo aplicadas na Inglaterra - um tempo recorde para o desenvolvimento de um imunizante. A essa altura a covid-19 já tinha causado a morte de 1,5 milhão de pessoas no mundo todo.

No Brasil, depois de muita cobrança e vários obstáculos colocados pelo governo de Jair Bolsonaro, a vacinação começou no dia 17 de janeiro, em São Paulo. E, dois dias depois em todo o país, com a vacina CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a empresa chinesa Sinovac.

Cerca de um mês depois, o Brasil também tinha disponível a vacina da Astrazêneca, fabricada pela farmacêutica inglesa em parceria com a Fiocruz. Nos meses seguintes, outras duas fórmulas foram incorporadas pelo SUS: a da Jansen e a da Pfizer. E esta última trouxe uma inovação revolucionária: a plataforma do RNa mensageiro

[ EFEITO SONORO]

TÂMARA: Funciona assim: alguns vírus, como o da covid-19, são feitos de RNA. Mas nós também temos esse tipo de moléculas nas nossas células, e ela é responsável por estimular a produção de proteínas. Quando um vírus entra no nosso organismo, ele invade as nossas células, que passam então a produzir proteínas diferentes, alertando o nosso sistema imunológico.

Em laboratório, os cientistas conseguiram produzir uma cópia sintética de parte do coronavírus, ou seja, um trecho de RNA falso, mas com todas as informações para ser interpretado pelo nosso corpo como verdadeiro.

Quando essa substância é injetada nas pessoas, o RNA sintético invade as células e produz a proteína que ativa o nosso sistema imunológico. Dessa forma, mesmo sem ter nenhum contato com o vírus, o nosso organismo é capaz de se tornar imune a ele e responder imediatamente no caso de alguma infecção futura.

Essa é a primeira tecnologia vacinal que não usa nenhuma parte dos agentes causadores das doenças. Ela já vinha sendo estudada há mais de 20 anos, mas tinha algumas fragilidades, que os pesquisadores conseguiram solucionar durante a força-tarefa contra a pandemia.

Especialistas como o dr. Renato Kfouri estão particularmente animados com a flexibilidade da plataforma do RNA mensageiro, que pode ser alterada rapidamente para combater novas variantes e até mesmo outros tipos de doenças.

KFOURY: "A tecnologia do RNA mensageiro é uma plataforma que abre uma janela de oportunidades para diversas outras doenças, não só as doenças infecciosos. Hoje se fala de desenvolvimento de vacinas para câncer, para tratamento de doenças como AVC, de doenças do cérebro, vasculares,cardíacas. Ou seja, a produção de uma proteína num ambiente extremamente seguro, já que essas vacinas sintéticas não utilizam microrganismos vivos, e consequentemente a biossegurança e a logística de produção ganha-se muito em escala. Sem dúvida trarão uma nova perspectiva daqui para frente e pode revolucionar todas as vacinas que a gente já conhece.

TÂMARA: A pandemia da covid-19 foi apenas a última tragédia que a humanidade conseguiu superar com o auxílio das vacinas. É consenso entre os especialistas de todo o mundo que elas foram o fator de maior impacto na saúde humana na história recente.

Quem confirma isso pra gente é o médico Guido Levi, que tem um longa carreira em instituições públicas ligadas à vacinação, e atualmente é membro da Comissão Permanente de Assessoramento em Imunizações da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo.

GUIDO LEVI:"O centro de controle de doença dos Estados Unidos da América em 1999 publicou uma avaliação com os fatores que mais aumentaram o tempo de vida média da população americana e a diminuição das doenças que causavam problemas sérios nessa população. E vários fatores foram valorizados. Por exemplo, as melhorias sanitárias, os antibióticos. Mas em primeiro lugar vieram as vacinas. Isso vale para o mundo todo. Para ter ideia, calcula-se que no mundo, nos últimos 200 anos, as vacinas seriam pessoalmente responsáveis por um aumento no tempo de vida média de cerca de 30 anos. Mas isso no Brasil ocorreu num período muito mais curto e mais recente. Se nós pegarmos o início da década de 70, o tempo de vida médio da nossa população era de 45 anos. Hoje é mais de 75 anos. Então, nesses 50 anos, houve um aumento de 30 anos no tempo de vida média da população. Qual foi o fator que desencadeou essa mudança rápida? Eu diria que foi a criação do programa nacional de imunizações.

TÂMARA: Por enquanto, apenas a varíola foi oficialmente erradicada em todo o mundo após o surgimento da vacina. Mas outras doenças tão graves quanto ela foram eliminadas em muitos países.

A mais emblemática é a poliomielite, também conhecida como paralisia infantil, por causa da sua sequela mais temida. Causada por um vírus, ela pode afetar o sistema nervoso e provocar enfraquecimento muscular.

[TRILHA MUSICAL TENSA]

TÂMARA: De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, uma em cada 200 infecções leva a uma paralisia irreversível, geralmente das pernas. E há consequências ainda mais graves: dos pacientes com paralisia, entre 5% e 10% morrem porque os músculos respiratórios param de funcionar.

[TRILHA MUSICAL TENSA]

TÂMARA: No Brasil, o último caso da doença foi registrado em 1989, mas ela ainda existe de forma endêmica no Afeganistão e no Paquistão. Infelizmente, nos últimos anos, alguns casos pontuais foram registrados no Malawi, nos Estados Unidos, em Israel e mais recentemente no Peru, acendendo um alerta vermelho por aqui, já que a cobertura vacinal no país vem caindo ano a ano.

Para que as crianças estejam seguras, é preciso que pelo menos 95% delas sejam vacinadas contra a pólio. Mas, no ano passado, apenas 77% receberam as três doses iniciais da vacina. E menos de 68% voltaram para tomar o reforço necessário.

Essa história a gente conta mais pra frente em detalhes. Aliás, a gente vai dedicar o último episódio inteiro para discutir por que as pessoas estão deixando de se vacinar e vacinar seus filhos, e o que está sendo feito para mudar essa situação.

Bom, mas grande parte dos brasileiros nem viu ou já se esqueceu do que a pólio fazia antes da imunização em massa. 26 mil pessoas foram infectadas pelo vírus no nosso país entre 1968 e 1989. Esse distanciamento é apontado como uma das razões para a vacinação decrescente: é mais difícil ter medo de um vilão que não faz vítimas há tanto tempo. Mas Guido Levi tem memórias bem vivas desse passado terrível, quando a pólio paralisava em média mil crianças por dia no planeta.

LEVI: "Todos nós que temos mais idade, ou aqueles que estudam esse período, estão cansados de ver fotos de crianças com muletas, com pernas mecânicas, quando não aconteciam coisas piores. Por exemplo, quando a doença acometia os nervos que controlavam a respiração, a criança ia para o que eles chamavam de pulmão de aço. E dentro desse pulmão de aço, que é uma máquina que fazia respiração dessas crianças, elas entravam para ficar lá dentro até o resto da vida. Eu ainda tive a ocasião de visitar a enfermaria de pulmão de aço do Hospital das Clínicas, e posso dizer que foi um uma das coisas mais chocantes que aconteceu na minha carreira profissional. Ver todas essas crianças dentro dessas máquinas, inclusive alguns adultos, mas principalmente crianças, e elas sabiam que nunca saíram de lá. E elas sabiam o quanto a gente se sentia pouco à vontade quando fazia visitas em enfermaria, então elas sorriam para gente, conversavam com a gente, tentavam deixar a gente mais à vontade. E hoje não tem mais essa enfermaria. Essa enfermaria foi fechada porque não tem mais nenhum paciente no Brasil no pulmão de aço por causa de pólio. E nós não temos mais crianças com necessidade de muletas e pernas mecânicas causadas pela doença.

TÂMARA: E não foi só a pólio que o Brasil conseguiu eliminar com a vacinação. Desde 2012, nosso país não registra casos de tétano materno e neonatal.

Essa doença não é transmitida entre as pessoas, e sim causada por uma bactéria chamada Clostridium tetanim. Ao contrário do senso comum, ela existe na natureza de forma geral, e não apenas em metais enferrujados, e por isso, alguns bebês se contaminavam durante o parto, no contato com instrumentos não esterilizados ou pelas condições inadequadas de higiene.

Em organismos tão frágeis, o tétano acaba tendo uma evolução aguda, rápida e letal, provocando contrações musculares generalizadas. Por isso, era conhecido como o “mal dos sete dias”, já que os primeiros sintomas começavam cerca de uma semana após o nascimento.

[TRILHA MUSICAL DE LAMENTO COM VIRADA POSITIVA]

TÂMARA: No continente americano, o tétano neonatal provocava mais de 10 mil mortes por ano, até ser eliminado em 2017. E a grande responsável por essa vitória foi a imunização das mulheres adultas com a vacina dupla bacteriana, que protege contra a difteria e o tétano, e das gestantes com a vacina dtpa, que além dessas duas, também previne contra a coqueluche acelular. A mãe imunizada produz anticorpos que são passados para o feto, que já nasce protegido contra as infecções.

Outra doença que tem efeitos devastadores nos bebês é a rubéola, que pode ser transmitida da placenta ao feto, quando a gestante é infectada. Nestes casos, ela leva à síndrome da rubéola congênita, e pode resultar em aborto, morte fetal ou provocar anomalias nos bebês, como diabetes, catarata, glaucoma e principalmente surdez. A proteção contra a rubéola é feita com a vacina tríplice viral, aplicada em crianças e adultos, mas vetada às gestantes.

O Brasil recebeu o certificado de eliminação da rubéola em 2015, após 20 anos de muito esforço para alcançar altos índices de vacinação entre a população adulta e controlar a circulação do rubivirus, que é transmitido até mesmo pelo ar.

E justamente por isso é que o risco de retorno da doença não pode ser descartado: se uma pessoa for infectada em outro país, por exemplo, e circular dentro do Brasil com as taxas gerais de vacinação baixas, a rubéola pode voltar a provocar surtos.

E a consultora da Organização Pan Americana de Saúde (Opas), Carla Domingues, chama a atenção para a queda na cobertura dessas vacinas. No ano passado, menos de 47% das gestantes tomaram a dtpa, e o índice de aplicação da segunda dose da tríplice viral não chegou a 58%.

CARLA DOMINGUES: "O tétano é uma doença que, se a criança adquire, ela vai a óbito quase que em 100% dos casos. Ela tem uma rigidez, é uma morte horrível! Ela vai enrijecendo todos os músculos e chegando depois a morrer por asfixia. E além de ter o risco do óbito ela tem um risco de sequelas que são gravíssimas. Essas doenças podem trazer problemas neurológicos seríssimos, que vão comprometer o sistema cognitivo dessa criança. Então a gente tem que mostrar isso à população o tempo todo, que quando eu vacino a mãe, eu estou protegendo indiretamente a criança

TÂMARA: Infelizmente, o Brasil já tem uma experiência do tipo. Em 2016, nós tínhamos eliminado o sarampo, mas, dois anos depois, o país voltou a registrar casos da doença, perdendo o certificado em 2019. Para controlar o sarampo, é preciso que pelo menos 95% da população se vacine, mas desde 2015 o Brasil não cumpre essa meta.

Como nós falamos agora há pouco, no ano passado menos de 58% das crianças tomaram as duas doses da vacina tríplice viral que protege contra o sarampo, a caxumba e a rubéola. Em 2019, o país chegou a registrar mais de 20 mil casos e 16 mortes pela doença.

Felizmente, os índices anuais vêm caindo: no ano passado foram 41 e neste ano, por enquanto, não tivemos nenhum caso. Mas o vírus do sarampo é extremamente infeccioso, podendo se espalhar para até 90% das pessoas não imunizadas que têm contato com alguém doente. Logo, basta uma pequena janela de oportunidade para a situação se complicar novamente, como alerta o doutor Guido Levi.

LEVI: “Sarampo é uma das doenças mais graves que acomete a infância e uma das que causava maior mortalidade. Quando eu fui consultor do hospital infantil da Cruz Vermelha brasileira, em São Paulo, no começo da década de 80, nós tínhamos metade do hospital tomado por crianças com sarampo - e com altíssima mortalidade. Bem, menos de 20 anos depois, eu me lembro de ter sido chamado pelos residentes da enfermaria do Hospital do Servidor Público Estadual para ver um caso muito estranho que eles tinham visto na Ppediatria de uma criança com febre, uma erupção cutânea, e ninguém sabia o que era. Os residentes disseram: "nós vamos apresentar os exames que fizemos por diagnóstico, que não ainda não trouxeram nenhum resultado positivo" (e eu disse): "gente não precisa de exame nenhum. É sarampo". Muitos desconfiados, olharam para mim, porque eles nunca tinham visto sarampo. E o sarampo realmente praticamente desapareceu do nosso meio, o Brasil recebeu certificado ... Só que o fato de não ver mais a doença trouxe um certo esquecimento da gravidade, da importância dela e o índice de vacinação baixou muito e com isso nós tivemos o retorno do sarampo.

TÂMARA: Além de evitar a volta desse triste cenário, a vacinação em massa traz ainda outro grande benefício para a saúde pública. Quem explica é a Carla Domingues, da OPAS.

DOMINGUES: "Se hoje nós temos leitos para cuidar de acidentes de trânsito e cuidar de doenças não transmissíveis como câncer, diabetes, é porque a gente não tem mais esses leitos sendo utilizados com doenças imunopreveníveis. Se a gente voltar a ter surto dessas doenças, a gente vai ter um esgotamento do sistema de saúde. Como a gente acabou de ver com a covid-19. Então essas doenças deixaram de ser tratadas porque a gente tinha que tratar basicamente só covid. A a gente vai competir com a gente mesmo e vamos criar problemas que já foram controlados e podem ser evitados só com ação de vacinação.

TÂMARA: Mas o milagre da vacina só acontece quando ela entra no corpo das pessoas.

[MÚSICA DE TRANSIÇÃO]

TÂMARA: Você que está me ouvindo: está com a carteira de vacinação em dia? Já conferiu se o seu filho está na época de tomar mais uma dose? E os idosos da sua família, já receberam todas as vacinas recomendadas? O site do Ministério da Saúde (www.gov.br/saude) disponibiliza todos os calendários básicos, com a idade certa para tomar cada dose.

Vacina é vida! E quando você se protege também ajuda a construir um ambiente mais seguro pra todos.

[MÚSICA PARA CRÉDITOS]

TÂMARA: Esse foi o primeiro episódio do Sala de Vacina, um podcast do jornalismo da Rádio Nacional e da Radioagência Nacional.

São cinco no total. Os episódios são encontrados no site radioagencianacional.ebc.com.br e também aqui nesta plataforma.

Ainda temos interpretação simultânea em Libras, a Língua Brasileira de Sinais, tanto no Spotify como no YouTube.

Eu sou a Tâmara Freire, responsável pela ideia original, produção e reportagem da série. E contei com a colaboração de Vinícius Lisboa, repórter da Agência Brasil, para muitas dessas entrevistas.

Quem faz a edição e pós-produção até esse podcast chegar até você é a Sumaia Villela.

A coordenação de processos é da Beatriz Arcoverde.

A estratégia de publicação e a distribuição nas redes sociais são assinadas por Liliane Farias e Raíssa Saraiva. A identidade visual e o design são de Caroline Ramos.

Neide Lins faz a interpretação em Libras, com direção de vídeo de Lorena Veras e captação de imagem de Daniel Hiroshi. A montagem da versão em vídeo é de Felipe Leite e Fernando Miranda.

Esta série tem fins jornalísticos e utilizou trechos de arquivo da Radioagência Nacional, Reuters, Jornal Hoje, Hora News, Hoje em Dia, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.

Para ler os trechos da Folha e do Estadão, contamos com a locução de Dilson Santa Fé. A voz de tradução do discurso da OMS disponibilizado pela Reuters é de Daniel Ito.

A identidade sonora e a sonoplastia do podcast são feitas pelo Jailton Sodré. A gravação do podcast é feita por Antony Godoy e a equipe de operação de áudio da EBC.

Depois volta aqui para continuar a saber sobre nossos grandes divisores de água na saúde pública: a vacina e o Programa Nacional de Imunização. Até mais!

[MÚSICA DE ENCERRAMENTO]

 

Em 26 de outubro de 1979, a OMS anunciou em Nairobi, no Quênia, que a última região do planeta estava finalmente livre da varíola. O último caso foi registrado dois anos antes, na Somália. Crédito: Thomson Reuters/Direitos Reservados

 

 

 

Ideia original, produção, roteiro e reportagem: Tâmara Freire
Apoio à produção: Vinícius Lisboa
Edição, pesquisa de mídia histórica, montagem e pós-produção: Sumaia Villela
Identidade sonora e sonoplastia: Jailton Sodré
Operação de áudio: Antony Godoy e equipe da EBC
Coordenação de processos: Beatriz Arcoverde
Estratégia de publicação e distribuição nas redes sociais: Liliane Farias e Raíssa Saraiva
Identidade visual e design: Caroline Ramos
Implementação na Web: Sumaia Villela e Lincoln Araújo
Interpretação em Libras: Raquel Melo
Direção de vídeo: Lorena Veras
Captação de imagem: Daniel Hiroshi
Montagem da versão em vídeo: Felipe Leite e Fernando Miranda
Narração das notícias antigas: Dilson Santa Fé
Narração em português do discurso histórico da OMS: Daniel Ito
Discurso histórico da OMS: Thomson Reuters
Notícias sobre covid-19: Radioagência Nacional, Jornal Hoje, Hora News, Hoje em Dia
Notícias antigas sobre varíola: Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo

 

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