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Século 20 foi o "século da canção", diz Zuza Homem de Mello

Para especialista, a bossa nova é credora da música dos Estados Unidos
Gilberto Costa - Repórter da Agência Brasil
Publicado em 24/01/2019 - 07:00
Brasília
Zuza Homem de Mello
© Marco Aurélio Olimpio/Direitos Reservados

A próxima sexta-feira (25) é Dia Nacional da Bossa Nova. A data também é aniversário de Antônio Carlos Jobim, que se fosse vivo completaria 92 anos. Para o pesquisador da música brasileira Zuza Homem de Mello, de 85 anos, o compositor de Águas de Março, ao lado do pianista norte-americano Duke Ellington, é a maior personalidade musical do século 20, o “século da canção”, como diz.

Jobim é apenas um dos músicos universais que Zuza conheceu pessoalmente em sua longa carreira de musicólogo, jornalista, escritor, radialista, engenheiro de som, curador de festivais e diretor de shows, além de baixista profissional - hegou a tocar na década de 1950 no trio de Dick Farney.

Ainda jovem, saiu do palco e foi para as coxias e bastidores para fazer o que mais gosta: “ensinar as pessoas a ouvir música”. Chamado de “mestre” por muitos, ensinou amadores e até grandes músicos, como o baixista Don Payne, que de passagem pelo Brasil no final dos mesmos anos 1950 junto com o cantor Tony Bennett, prestou atenção na música que Zuza mostrava e que se fazia no Brasil: a bossa nova.

Payne levou uma coleção de discos de brasileiros para os Estados Unidos e mostrou a gente como o saxofonista Stan Getz, parceiro de João Gilberto no antológico álbum Getz/Gilberto (1964), principal vetor da bossa nova entre os norte-americanos.

Atribui-se a Tom Jobim a frase: “Toda música é reflexo de uma época”. Poucos viveram sua época como Zuza Homem de Mello vive. As histórias estão em uma dezena de livros, trilhadas em suas playlists em plataformas streaming, seu programa na Rádio USP ou em documentário a seu respeito e do jazz recentemente finalizado.

>> Ouça a Playlist do Zuza na Rádio MEC

 

Abaixo os principais trechos de uma entrevista de 50 minutos por telefone, direto de sua casa em Indaiatuba (SP), à Agência Brasil:

 

Agência Brasil: O documentário Zuza Homem de Jazz abre com você dizendo que viveu e sabia que estava vivendo um momento de pico. Quando foi exatamente esse ponto alto?

Zuza Homem de Mello: (Risos) São muitos momentos de pico. Eu tenho na memória muitos momentos incríveis, algumas apresentações maravilhosas... Ouvir a Billy Holiday no palco, ver o Miles Davis, ver o [John] Coltrane com Thelonious Monk no Five Spot Café [em Nova York]... Cada vez que eu ia lá, era um momento de pico. E na música brasileira, vi alguns espetáculos inesquecíveis: Pixinguinha no Teatro Colombo [São Paulo] nos anos [19]50, o Ismael Silva em um palco no Rio de Janeiro, para falar de gente da antiga. Ficar ouvindo João Gilberto tocar para mim num quarto de hotel em Nova York durante uma semana as músicas do LP Amoroso, que estava sendo lançado naquela ocasião (1977), claro que foi um momento de pico. Como disse no documentário: para mim o que contam são os momentos de pico, não os médios ou os de baixa.

 

Agência Brasil: A origem do jazz tem a ver com a afirmação da cultura negra norte-americana. Mas no Brasil, havia críticos que torciam o nariz e reclamavam da contaminação da música brasileira pelo jazz, que teria atingido um ponto máximo na bossa nova. No seu documentário, o pianista André Mehmari executa um “jazz” do Pixinguinha. Esse temor faz algum sentido?

Zuza: Não. Não faz sentido nenhum. As duas músicas procedem do continente africano. Não nos esqueçamos que os escravos negros que vieram para as Américas [do Sul e do Norte] procediam de diferentes regiões da África. A música quando chegava, tentando recordar aquilo que era da África, se misturava com aquilo que havia onde estavam. Com isso, o que resultava eram coisas diferentes. Em New Orleans tinha influência espanhola, francesa e inglesa. Aqui, vieram para Salvador, onde haviam os brancos portugueses e os indígenas. Então, é claro que o resultado é diferente, mas a raiz é a mesma. Dizer que a música brasileira não tem nada a ver com o jazz é um puro preconceito. É um medo de olhar para a gênese da música brasileira. É um receio, ou talvez incompreensão, de que isso é um fato. Isso para mim é uma tese que está comprovada com o que diz [no documentário] pessoas competentes como [o trompetista] Wynton Marsalis, como o Gary Giddins, que é o maior crítico de jazz, e que revela o quanto o jazz ficou devendo à bossa nova no momento que se viu meio desnorteado com a chegada do rock. Existe uma influência. Na época que o Pixinguinha foi para a Europa, em 1922 com os Oito Batutas, ele foi tocando flauta e ao voltar para o Brasil ele retorna tocando saxofone, um instrumento de jazz. Mais do que isso, ele usa o saxofone como um contracanto para as gravações de espetáculo em que o flautista era outra pessoa. Ou seja, ele se coloca em um lugar exatamente igual ao que se coloca um jazzista de New Orleans, em que há um contracanto para a melodia principal.

 

Agência Brasil: A música instrumental brasileira de hoje é tributária da bossa nova?

Zuza: Na bossa nova, os músicos começaram a fazer improvisos mais longos. Coisa que não existia nas gravações de música instrumental brasileira, improvisos mais longos idênticos aos improvisos do jazz. E por quê? Porque o disco de três minutos [tempo de execução em cada lado dos discos de 78 rotações] não permitia isso. Só era possível ouvir músicos brasileiros fazendo improvisos nas orquestras dos taxis dancer no Rio e em São Paulo. Eu frequentava muito. Nessas orquestras, não havia problema de tempo. Os músicos podiam improvisar em cima de choro e de música de gafieira.

 

Agência Brasil: No seu livro sobre Copacabana, você diz que o samba-canção fez a música brasileira avançar. Mas há quem ache que aquela música era o nosso bolero e era uma música muito soturna, devidamente deixada no passado. Que importância o samba-canção teve para o surgimento da bossa nova e para a música que veio depois?

Zuza: Aqueles compositores que estão nomeados no último capítulo do livro, Os Modernistas, são compositores que faziam questão de mostrar um avanço harmônico e melódico. Eram pessoas inquietas. Você pega Antônio Carlos Jobim, José Maria de Abreu, Tito Madi, todos eles faziam samba-canção visando a modernidade, aquilo que não existia nas composições de autores anteriores, da chamada Época de Ouro.

 

Agência Brasil:  Você trabalhou diretamente nos festivais que revelaram uma geração musical. A televisão mudou a maneira de fazer música popular?

Zuza: Ela abreviou a percepção do público para artistas que apareceriam fatalmente na música brasileira. O valor desses quer surgiram na Era dos Festivais cedo ou tarde se faria notar. Quando eles apareceram na televisão, as pessoas tomaram contato direto com as suas primeiras músicas e em primeira mão. Não se esqueça que todas aquelas músicas eram então inéditas. A pessoa assistia pela televisão a primeira vez que uma música estava sendo executada. Foi um estilingue extraordinário para a música popular brasileira, que até então era conhecida pelo rádio. Mas a grande mudança, a meu ver, se deu no Festival [de Música Popular Brasileira] de 1967 [organizado pela TV Record], quando os compositores foram para os palcos para interpretar as suas próprias músicas. Edu Lobo foi cantar sua música, Ponteio. Gilberto Gil, Domingo no Parque; Caetano Veloso, Alegria, Alegria; e Chico Buarque, Roda Viva. Os compositores se projetaram como cantores, como intérpretes de suas próprias composições. Isso deu uma nova configuração: os cantores não são mais os donos das músicas.

 

Agência Brasil: Por causa do disco, do rádio e da TV, podemos dizer que o século 20 foi o século da música?

Zuza: Foi o século da canção. Canções são músicas que têm letra, o que não inclui a música lírica. As canções têm um sentido próprio que começa e termina naquela música. Já a música lírica faz parte de um conjunto de uma sequência, do roteiro que é a própria ópera. A canção tem começo, meio e fim. O século 20 revelou compositores maiores de canções no mundo inteiro, não foi só no Brasil.

 

Agência Brasil: Noel, Ary e Caymmi tiveram sucessores. Tom, Vinicius e João Gilberto tiveram sucessores. Gil, Caetano e Chico não têm e permanecem como os “três orixás da MPB”. A música popular brasileira vai morrer?

Zuza: Você foi um pouco restritivo no nome desses três. Você não pode deixar de incluir o Paulinho da Viola, o Edu Lobo, o Milton Nascimento. Estão todos no mesmo nível, na mesma excelência de composição. Ao incluir outros nomes, verá que há outros descendentes. Você não pode dizer que João Bosco e Djavan não estão no mesmo padrão. A música brasileira vive um momento extraordinariamente rico. Todos eles estão em franca produção. São essas pessoas que sustentam a nobreza da música brasileira. A nobreza não pode ser confundida com aquilo que a mídia propõe como sendo o destaque, o sucesso, aquilo que se baseia pelo número de visualizações na internet.