Entrevista: negros têm mais dificuldade de permanecer na universidade
O aumento do número de pessoas negras nas universidades “é importante em todas as dimensões da vida social.” A avaliação é do historiador Marcus Vinicius de Freitas Rosa, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e autor do livro Além da Invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante o pós-abolição.
Em entrevista por escrito à Agência Brasil, o intelectual e pesquisador avalia que a quantidade de pretos e pardos estudando nas universidades públicas ainda não é equivalente ao peso no conjunto da população. Mas ele reconhece avanços recentes e tem expectativa de que esteja “se formando uma classe de profissionais negros bem formados e espera-se que isso tenha impacto também nos padrões de consumo.”
A ampliação do ingresso de negros nas universidades tem, no entanto, “demandado urgentemente a adoção de políticas públicas com foco na permanência dos estudantes negros”, alerta Freitas Rosa que é professor da graduação e do Programa de Pós-Graduação em História e do Mestrado Profissionalizante em História da UFRGS. A seguir a entrevista do acadêmico
Agência Brasil: Em termos numéricos, há registro de um aumento de 400% de pessoas negras nas universidades nos últimos anos. Parece ser bastante expressivo, mas dada a configuração da sociedade brasileira, a proporção de negros com curso superior corresponde ao peso dessa população na nossa composição social?
Marcus Rosa: De acordo com o IBGE, mulheres e homens negros chegaram a 56,2% da população brasileira em 2018. Ainda conforme o IBGE, ao longo desse mesmo ano, a população negra passou a formar a maioria (50,3%) entre as pessoas que frequentam as instituições públicas de ensino superior. É importante ressaltar que se trata das “pessoas que frequentam”, e não das pessoas que efetivamente alcançam a diplomação. A quantidade de pessoas negras estudando nas universidades públicas ainda não é proporcional ao seu percentual entre os brasileiros. Além disso, deve ser considerado o percentual de negros em cada unidade da Federação.
Agência Brasil: Que importância teve a política de cotas para esse resultado? E o acesso ao financiamento para ingresso nas universidades privadas?
Marcus Rosa: Esse resultado se deve, em grande medida, à adoção de programas institucionais de ações afirmativas, reservando vagas às pessoas negras nas universidades brasileiras. Ao mesmo tempo, se deve também às modificações nas formas tradicionais de ingresso. Além do concurso vestibular, que sempre favoreceu alunos provenientes das classes médias e dos setores mais ricos - círculos sociais majoritariamente brancos - o Enem e o Sisu possibilitaram o ingresso de estudantes negros oriundos de escolas públicas. A presença negra nas instituições de ensino superior antes das cotas era muito baixa. Nas universidades privadas, os negros somaram 46,6% dos estudantes em 2018. Ainda que não seja proporcional ao número de negros na sociedade brasileira, esse número certamente se deve à ampliação das formas de acesso ao financiamento para estudar nas universidades privadas, tais como Fies e Prouni. Contudo, antes da adoção dessas modalidades de financiamento, já havia certa presença de estudantes negros trabalhadores nas universidades particulares. Desde a década de 1970, havia o Crédito Educativo, que buscava contribuir para a inserção acadêmica de pessoas oriundas das classes mais populares, grupo sociais onde a presença negra sempre foi majoritária. O grande desafio das famílias que buscam formas de financiamento sempre foi evitar o endividamento.
Agência Brasil: Que políticas públicas poderiam ser calibradas ou adotadas para manter o crescimento da participação?
Marcus Rosa - Para a manutenção dos números até agora atingidos é necessária a continuidade das políticas públicas de acesso à educação superior, sobretudo a combinação entre as cotas raciais e as novas modalidades de ingressos, tais como Enem e Sisu. Ao mesmo tempo, ressalto que a ampliação das formas de ingresso tem demandado urgentemente a adoção de políticas públicas com foco na permanência dos estudantes negros nas instituições de ensino. Sem elas, fica mais difícil obter o diploma.
Agência Brasil: Estudantes negros sofrem mais riscos de evadir da faculdade?
Marcus Rosa: Negros são majoritários entre os mais pobres no Brasil, enquanto a população branca está bem distribuída ao longo da hierarquia social. Sendo mais pobres, os negros acabam encontrando maiores dificuldades de permanecer na universidade. Os horários de oferecimento das aulas, de funcionamento das bibliotecas, das reuniões dos grupos de pesquisa, das atividades de extensão, tudo isso condiciona, dificulta ou inviabiliza a participação dos alunos negros, que via de regra são os menos abastados e frequentemente precisam complementar a renda familiar. Ter que trabalhar e estudar ao mesmo tempo é um dos grandes empecilhos para estudantes negros. Disso resulta o fato de que tendem a demorar mais para se formar ou acabam evadindo da faculdade para ingressar no mercado de trabalho. Soma-se a essas dificuldades a postura institucional dos professores universitários, majoritariamente brancos, que costumam favorecer alunos que se dedicam exclusivamente aos estudos, preterindo estudantes trabalhadores. Outro fator explicativo, diferencial e decisivo para a evasão de alunos negros é o racismo escancarado que, volta e meia, se manifesta nas declarações dos docentes. É difícil finalizar um semestre tendo aulas com professores que insistem em fazer comentários e tomar atitudes racistas.
Agência Brasil: Em termos econômicos, sociais e simbólicos, qual a importância de que mais pessoas negras tenham acesso ao curso superior?
Marcus Rosa: A ampliação negra nas universidades é importante em todas as dimensões da vida social. Epistemologicamente, os alunos negros têm exigido a alteração das bibliografias, dos autores lidos, das temáticas de ensino e das referências teóricas. Em outras palavras, querem ler autoras e autores negros, conhecer mais a respeito de sua própria história e conhecer profissionais qualificados que sirvam de referência em todos os campos de conhecimento e áreas de atuação profissional. Socialmente, se trata de possibilitar educação aos círculos sociais que nunca tiveram acesso à educação superior e de formar as futuras gerações de professores universitários. Em termos econômicos, ainda que lentamente, está se formando uma classe de profissionais negros bem formados e espera-se que isso tenha impacto também nos padrões de consumo. Além disso, elas e eles servirão de referência para as próximas gerações de jovens negros.
Agência Brasil: Imagino que com o aumento de negros formados, a oferta de força de trabalho qualificada tenha ficado "mais colorida". Mas com diploma na mão, os negros formados estão conseguindo bons empregos? O mercado de trabalho para os melhores postos ficou mais acessível?
Marcus Rosa: O processo de ampliação da qualificação acadêmica dos negros e negras brasileiros não está sendo acompanhado por acesso aos melhores e mais bem remunerados cargos e funções, especialmente nas empresas privadas. Além disso, a qualificação ainda não está garantindo igualdade salarial. Conforme os dados anualmente divulgados pelo IBGE, se mantém a desigualdade em que homens brancos recebem mais do que mulheres brancas que, por sua vez, recebem mais do que homens negros. Por fim, as mulheres negras continuam recebendo os menores salários. Ainda são bastante raros os casos de empresas privadas que adotam políticas de recrutamento de mulheres negras e homens negros para os cargos mais estratégicos e bem remunerados. No mercado de trabalho, a desigualdade racial se mantém e se entrelaça com a desigualdade de gênero.