Incêndio em Teresópolis evidencia vulnerabilidade urbana a lixões
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) determina que todas as cidades do país deem destinação final ambientalmente adequada ao lixo até agosto de 2024. Na prática, isso significaria o fim de lixões nos 5.570 municípios brasileiros. O incêndio de um lixão em Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro, que começou no dia 26 de junho e durou dias, deixa evidente uma das ameaças enfrentadas por populações que vivem perto de depósitos de lixo inadequados.
Com 165 mil habitantes, Teresópolis é conhecida por ser um destino turístico, com mais apelo no inverno, por causa do clima acolhedor.
No fim de junho, porém, virou notícia por causa de um incêndio de grandes proporções. O fogo no depósito de lixo, às margens da BR-116, criou uma nuvem de fumaça que encobriu grande parte da cidade. A falta de visibilidade forçou o fechamento da rodovia, aulas foram suspensas em 35 escolas municipais e 18 creches foram fechadas, só voltando a funcionar três dias depois. O Serviço de Pronto Atendimento Dr. Eitel Abdallah recebeu 10 crianças e 23 adultos e 20 pessoas foram acompanhadas por unidade móvel e precisaram de serviço de atendimento domiciliar. Segundo a prefeitura de Teresópolis, todos os casos foram leves e sem necessidade de internação.
Mais de uma semana depois do incêndio, porém, continuam os trabalhos de rescaldo. "Avaliamos o terreno diariamente para resfriar e prevenir novos focos de incêndio", informou o major Fábio Contreiras, porta-voz do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro. Acionada pela prefeitura, a 110ª Delegacia de Polícia (Teresópolis) apura as causas do incêndio.
O Lixão do Fischer, que já tinha sido interditado pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) devido às condições operacionais desfavoráveis, operava desde 2018 por força de liminar do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). No dia 27 de junho, a liminar foi suspensa pelo TJRJ, mas a prefeitura de Teresópolis tem um acordo com o Inea que autoriza o descarte de resíduos no aterro.
Mapeamento
A Política Nacional de Resíduos Sólidos foi criada por lei em agosto de 2010 e, entre outras determinações, estabelece o fim dos lixões a céu aberto. O prazo original era 2014, mas foi estendido para 2024.
A edição 2022 do Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), revela que quase 39% do total de resíduos coletados no país – 29,7 milhões de toneladas – têm destinação inadequada, indo parar em lixões ou aterros controlados, o que, segundo o estudo, pode afetar a saúde de 78 milhões de pessoas.
A destinação inadequada de resíduos contamina o solo, as águas e polui o ar, o que acaba tendo impacto não só no local onde as unidades estão instaladas, mas se estendem, conforme estudos internacionais, até um raio de 60 quilômetros. “Por isso, 78 milhões de brasileiros acabam sendo afetados pelos lixões, porque contabiliza-se a população que está neste raio de abrangência”, esclarece o presidente da Associação Internacional de Resíduos Sólidos, Carlos Silva Filho.
O levantamento mostrou que os moradores de 2.826 dos 5.570 municípios brasileiros convivem com depósitos de lixo inadequados, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. “Em geral, são municípios menores, mais isolados dos centros urbanos e cidades que têm algum problema orçamentário”, diz Silva Filho.
Riscos
O engenheiro civil Renan Finamore, professor do Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que há três formas de despejo do lixo, e a pior de todas é o lixão. “É basicamente lançar os resíduos no solo sem nenhuma preparação, sem nenhuma forma de impermeabilizar o solo, enfim, sem controle algum”, disse à Agência Brasil.
Outra forma de manejo do lixo, também inadequada, são os aterros controlados, que consistem em lixões cercados, o que permite minimamente controlar o acesso à área. Em alguns casos, existe infraestrutura para, ao menos, captar o chorume e o gás metano, elementos resultantes da decomposição do lixo.
A forma mais adequada e determinada pela PNRS são os aterros sanitários. “Um projeto de engenharia que, desde o início, é pensado para acondicionar os rejeitos. Protege-se o solo, que é impermeabilizado, e o material é coberto para não ficar a céu aberto”, explica Finamore.
A falta de aterros adequados expõe a saúde e a segurança de populações vizinhas. Além de inconvenientes como o mau cheiro, o professor aponta entre os principais riscos para a sociedade a contaminação do solo pelo chorume, que pode chegar ao lençol freático, o que deixa mais vulneráveis populações que consumem água de poço artesiano.
“Como os lixões não têm controle adequado, ali tem pilha, eletroeletrônico, metal pesado. Tudo isso tem potencial de atingir o lençol freático, fica exposto, inclusive, à chuva. Choveu, aquilo vai se misturar, e a água acaba carregando essas substâncias para outras áreas”, detalha o professor.
Outro perigo é a presença de animais, como cachorros, roedores, urubus e insetos, que agem como vetores para a transmissão de doenças aos seres humanos.
Nos lixões, diferentemente da situação nos aterros sanitários, a atividade de catadores ocorre sem controle, por exemplo, sem vigilância do uso de equipamentos de proteção individual. Isso leva uma dose de risco a esses trabalhadores, seja pelo contato com contaminantes, seja por lidarem com objetos cortantes e perfurantes.
O gás metano, resultante da decomposição do lixo, é mais um fator de perigo, por ser inflamável. “Por isso que o incêndio é um risco real em qualquer lixão”, alerta Finamore.
O professor Marcos Freitas, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da UFRJ, aponta questões de insegurança ligadas ao uso do terreno. “Dependendo do volume estocado e da estabilidade da terra, há riscos de deslizamento e graves acidentes afetando populações do entorno e infraestruturas, como estradas, sobretudo, no período de chuvas mais intensas”, ressalta Freitas, que coordena o Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais. “Isso sem contar a poluição visual e perda de valor de propriedades urbanas e de interesse de turismo e lazer.”
Lixo como recurso
Os especialistas entrevistados pela Agência Brasil concordam que a solução para o problema do destino final do lixo no país passa pela criação de mais aterros sanitários, que, além de mitigar impactos ao meio ambiente e à população, estimulam uma política de enxergar o lixo como um recurso, investindo em coleta seletiva e intensificando a reutilização de materiais e a reciclagem, o que, inclusive, aumenta a vida útil dos aterros sanitários.
“O que deve ser feito é a reduzir a geração de resíduos. O que pode ser reaproveitado precisa ser reaproveitado, o que pode ser reciclado deve ser reciclado. Quase metade da composição do resíduo sólido urbano é matéria orgânica de alimento. Poderia ser feita, por exemplo, compostagem para gerar adubo. Tem potencial para se tirar proveito”, ressalta Finamore, da Escola Politécnica da UFRJ.
Marcos Freitas destaca ainda o potencial de geração de energia, biogás, a partir dos rejeitos. “A Europa, a América do Norte e a Ásia avançam rapidamente nestas opções”, exemplifica.
Enquanto o Brasil corre contra o tempo para que cidades encontrem formas de dar um destino ambientalmente correto ao lixo, o levantamento da Abrelpe sobre destinação inadequada dos rejeitos faz o diagnóstico: “há uma carência de recursos para custear as operações do setor, o que afeta diretamente a execução, ampliação e modernização dos serviços”, expõe o estudo.
“Precisamos de investimentos nos sistemas logísticos, de investimentos para implantação das novas infraestruturas e principalmente de recursos para custear a operação de valorização dos resíduos”, diz Carlos Silva Filho, da ISWA. O PNRS prevê que todas as cidades cobrem uma taxa pelos serviços de manejo de resíduos, como forma de frear o excesso de lixo.
Passivo ambiental
Os lixões que forem desativados ainda precisarão ser cuidados por muito tempo pelas autoridades, para que não se tornem, como lembra o professor Finamore, “um novo morro do Bumba”, em referência à tragédia em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde uma comunidade foi erguida em cima de um lixão desativado. Em abril de 2004, um desmoronamento deixou 48 mortos.
Vira um passivo ambiental, e é necessário um gerenciamento daquela área para não permitir que vire um lugar de habitação. “Não recebe mais resíduos, mas a decomposição continua gerando metano. Você não pode construir nada ali em cima porque a estabilidade do terreno fica comprometida. É preciso monitorar por muitos anos ainda", adverte.
Futuro do Fischer
O incêndio no Lixão do Fischer não deixou feridos, e a cidade de Teresópolis está na lista das que precisam encontrar uma forma ambientalmente adequada de armazenar os resíduos produzidos pela população e pela atividade econômica.
Segundo a prefeitura, estão sendo tomadas medidas para resolver de forma definitiva o problema histórico do Fischer, que passa por alternativas para o transbordo do lixo, viabilizando o fechamento total do aterro. Há ainda um processo licitatório para implantação de uma usina de processamento de lixo e geração de energia que, de acordo com a administração do município, será realizado ainda em 2023.
A Secretaria estadual do Ambiente e Sustentabilidade do Rio de Janeiro diz que recebeu pedido de apoio da prefeitura de Teresópolis para custear uma solução visando a destinação ambiental adequada dos resíduos. E avalia o apoio ao município, por meio do Programa Compra de Lixo Tratado, que contribui para a meta de encerramento de lixões.