Além de serem torturadas, algumas vítimas da Ditadura eram obrigadas a ajudar os militares que atuavam na Casa Azul, localizada em Marabá, no Pará. Na segunda reportagem da série especial sobre a visita da Comissão Nacional da Verdade a um dos principais centros clandestinos de tortura durante a Ditadura Militar, a repórter Maíra Heinen traz também os detalhes da visita ao local usado para a desova dos corpos das pessoas que eram mortas na Casa Azul, hoje conhecido como Cemitério da Saudade.
“O caso da Casa Azul foi muito impressionante porque, provavelmente, foi o maior centro clandestino [que existiu]”, relata a professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Heloísa Starling.
Localizada no sudeste do Pará, a Casa Azul ainda resguarda o terror dos moradores de Marabá e região que passaram por lá, há cerca de quarenta anos, no regime militar. O relato da professora Heloísa Starling, que coordenou as pesquisas sobre os centros de tortura espalhados pelo país durante a ditadura, mostra que a casa paraense não era um simples centro de interrogatórios.
“Tem uma coisa interessantíssima: o tempo todo você tem um observador militar do Planalto, dentro da Casa Azul. Isso mostra a ligação direta com o Alto Comando [das Forças Armadas]”.
Trechos do livro “Direito à Memória e à Verdade”, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, citam que uma investigação realizada pelo Ministério Público Federal, em 2001, por meio de depoimentos, identificou a instalação de quatro bases militares na região sul e sudeste do Pará.
Em Marabá, além da Casa Azul, eram utilizados mais dois imóveis: a sede do INCRA e um presídio militar. Em São Domingos do Araguaia estava localizado o presídio da Bacaba. Ali era feita a triagem dos camponeses suspeitos e dali alguns seguiam para a Casa Azul.
O Alto Comando em Brasília provavelmente soube o que se passou com o soldado Manuel Messias Guido Ribeiro. Ele foi recrutado pelo Exército para servir na guerra contra os chamados comunistas, mas tinha pena dos prisioneiros. Manuel relatou que também foi torturado, o que era chamado de treinamento, para que ele se brutalizasse e esquecesse da dignidade dos outros.
Mas o “treinamento” de Guido não surtiu o efeito esperado. Em muitas noites, discretamente, ele levou água e comida para os torturados. Não participou de nenhuma sessão de tortura, pois apenas os chamados “doutores”, estavam autorizados. Na casa abandonada, as memórias de Guido Ribeiro foram retornando aos poucos. Durante os relatos, ele suava do calor e do nervosismo que as lembranças causaram.
“Aqui tinha mais presos do que poderia caber numa cela. Eram torturados. O que o senhor pensar de tortura que pode ser feita, foram feitas. Choques, colocava [a pessoa] em cima de duas latinhas e dava choque nas latas. Tinha até uma música, horrível, não consigo esquecer aquela desgraça”, lembra chorando.
Após seis anos, Guido foi dispensado de servir os militares.
Alguns dos homens que Guido viu sofrer na casa morreram e seus corpos seguiram para o Cemitério da Saudade.
Este cemitério, a propósito, surgiu a partir dos corpos que ali eram enterrados clandestinamente a mando dos militares. Os irmãos Ivan Jorge Dias e Ivaldo José Dias carregaram, entre os anos de 72 e 73, o peso de corpos inocentes para lá. Os irmãos também foram vítimas de tortura e eram obrigados a fazer o serviço.
Retornar ao cemitério com a Comissão Nacional da Verdade foi para eles mais um ato de coragem. Ivaldo segurou o choro enquanto mostrava os locais onde possivelmente estariam enterrados alguns corpos da guerrilha e que possivelmente passaram pela Casa Azul.
“Me dá vontade de chorar, sinceramente. Eu estou me segurando para não chorar de tristeza do que eu passei aqui nessa região, na época. Eu não estou bem não, mas, perto daquela época e do que eu passei, estou superado, graças a Deus.”
Os sobreviventes ainda hoje sentem muito medo e aguardam uma reparação pelos danos físicos e psicológicos por parte do governo brasileiro. Enquanto isso, eles convivem diariamente com pesadelos e noites mal dormidas, em que revivem a guerra.
Amanhã (25), na terceira e última reportagem da série especial sobre a Casa Azul, em Marabá, no Pará, a repórter Maíra Heinen conta que todos os sobreviventes que deram depoimentos para a Comissão Nacional da Verdade durante a visita ao local, citaram o nome Sebastião Rodrigues de Moura, mais conhecido como Major Curió, como um dos principais torturadores. Curió nunca aceitou prestar esclarecimentos à Comissão.
Acompanhe também na Agência Brasil
*A repórter viajou a convite da Comissão Nacional da Verdade