Portal traz áudios que comprovam que STM sabia de tortura na ditadura
No dia 2 de março de 1977, oito estudantes foram julgados pelo Superior Tribunal Militar, sob a acusação de integrarem o Partido Comunista Brasileiro, lançado à clandestinidade pela ditadura que vigorava no Brasil. Apesar de terem sido absolvidos, nenhum deles saiu ileso desse processo: antes do julgamento já tinham sido presos e torturados barbaramente. E áudios inéditos da sessão secreta do Tribunal, aos quais a Rádio Nacional teve acesso, comprovam que os ministros sabiam que as confissões eram obtidas dessa maneira.
As gravações dos julgamentos do Supremo Tribunal Militar durante a ditadura fazem parte do portal Voz Humana, lançado nesta sexta-feira, dia 31 de março, quando o golpe militar oficialmente completa 59 anos. O site é um projeto do advogado Fernando Fernandes, que luta para tornar as gravações públicas desde 1997.No entanto, a liberação ao público só foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal em 2007, em uma decisão desrespeitada pelo STM por dez anos, até nova ordem da ministra Carmen Lucia.
Algumas batalhas foram vencidas, mas a guerra ainda não acabou. Ao analisar as milhares de horas gravadas, Fernandes identificou muitas ausências: sessões que aparecem em atas, mas não têm áudio correspondente, e outras em que a gravação é interrompida logo no começo.
"Para estar em uma sessão secreta e estar escondido até hoje, a relevância é importante. Nos processos se tem a construção de documentos oficiais. Muitas vezes as pistas da verdade são escondidas. Já em uma sessão secreta, na qual os ministros falavam e achavam que isso nunca seria escutado, é possível se achar elementos, sem esse filtro".
O Tribunal foi questionado, mas não respondeu.
A falta de parte dos áudios não surpreende a ex-presidenta da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, Nadine Borges. Ela classifica como “tímida” a troca de informações com as Forças Armadas e o STM ao longo de todo o trabalho, de 2011 a 2014.
"Até hoje eles, de fato, não abriram os arquivos daqueles que foram responsáveis por essas violações que o STM conseguiu preservar. Então continua havendo uma seleção daquilo que pode ser conhecido da população da sociedade brasileira e nós não vamos ter um regime democrático enquanto perdurar esse comando de esquecimento".
Parte dos áudios já tinha sido divulgada em abril do ano passado pelo professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Fico, que também estuda o material. Neles, vários ministros reconhecem como verdadeiras as denúncias de tortura feitas pelos réus, mas encaram o que era norma como se fosse um desvio. Isso contribui para a explicação de Fico para o apoio que a ditadura tem até hoje entre parte da sociedade: a tendência das pessoas de aderirem a memórias enviesadas e confortáveis ao invés de enfrentarem problemas tão desagradáveis e traumáticos.
"Censura que impedia que a população tivesse notícia da violência brutal da repressão e a propaganda que vendia a imagem de um país positivo, muito pacificado. Tem gente que fala em 'ditabranda', que afinal de contas teve um lado bom, porque teve a Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói, então ignora toda a realidade da desigualdade social, da repressão".
Mas quem deseja confrontar um dos episódios mais tristes da história do Brasil, agora tem mais uma ferramenta. O portal Voz Humana, disponível a partir deste dia 31 de março, vai disponibilizar progressivamente todos os áudios gravados pelo STM de 1975 a 1985, além dos autos dos processos e de textos explicativos sobre alguns casos de destaque.
Especial Semana Passado Presente: Ditadura e Democracia
A Radioagência Nacional apresenta um especial com seis reportagens sobre a Ditadura Militar. As matérias serão publicadas de 27 de março a 1º de abril. Essa é a quinta da série. Confira a relação completa abaixo:
- Ditadura: apoio ao golpe de 64 beneficiou grandes empresários
- Historiadores explicam disputa de narrativas sobre ditadura militar
- Ditadura militar contribuiu para genocídio dos povos indígenas
- Assassinato de Alexandre Vannuchi Leme foi primeiro revés da ditadura
- Portal traz áudios que comprovam que STM sabia de tortura na ditadura
- Ditadura: impunidade de agentes e imagem distorcida ainda têm reflexos
Ficha técnica:
Reportagem: Tâmara Freire
Edição: Roberto Piza
Publicação na Radioagência Nacional: Renata Batista