Acesso a rede de denúncia de violência é desafio para mulher com deficiência
O caminho para a denúncia de uma violência é doloroso para as mulheres. Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Pessoa com a Deficiência, celebrado nesse domingo (3), o alerta é que a este tipo de situação é ainda mais delicada quando a violência envolve uma mulher com deficiência.
"Chega a ser quase uma catarse. Mostrar sua vulnerabilidade frente aos outros é tão doloroso quanto a agressão sofrida", afirma a servidora pública Márcia Gori, que preside a organização não governamental Essas Mulheres, sediada em São José do Rio Preto (SP) e que atende mulheres com deficiência.
A vulnerabilidade em relação ao abusador – seja física, psicológica ou econômica –, somada à falta de acessibilidade nas redes de proteção, dificulta a denúncia e fortalece a sensação de impunidade por parte do agressor.
"A situação de dependência de algumas mulheres com deficiência faz com que o risco de violência se agrave mais ainda, porque a mulher não pode se defender e tem dificuldade de chegar com sua denúncia às delegacias de polícia", explica a médica e ex-secretária nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Izabel Maior.
Márcia Gori denunciou o ex-marido após décadas de abuso constante. "Ao longo de quase 30 anos, eu, minhas filhas e meus animais sofremos nas mãos desse homem com violência moral, psicológica e física", lembra. Ela explica que, aos olhos da comunidade, ele “era um homem desprendido, casado com uma mulher com deficiência, duas filhas, que deixou de viver para cuidar de nós", conta.
O homem "generoso", no entanto, se tornava severo e quase não sorria dentro de casa. "Logo fui descobrindo o lado cruel de suas palavras, me ridicularizando frente ao mundo, dizendo que jamais encontraria um homem que me amasse de verdade, ao contrário dele que me aceitava mesmo com os meus defeitos, porque ele era 'bom e caridoso'".
A violência deixou marcas profundas que não são esquecidas. Ela diz que ainda sofre com as lembranças: "São etapas que venho vencendo aos poucos com ajuda de terapia e na luta pelo meu empoderamento e das mulheres com deficiência".
Dados preocupantes
As mulheres com deficiência denunciam mais agressões e violações (45%) do que homens (44%) com algum tipo de limitação. Os dados são do relatório elaborado a partir dos atendimentos recebidos pelo Disque 100, da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, em 2016.
Entre as vítimas, 25% são jovens de 18 a 30 anos. Os números mostram ainda que 56% delas se identificaram como pretas ou pardas, enquanto 43% como brancas.
O relatório do Disque 100 mostra que a maioria dos suspeitos dos crimes contra pessoas com deficiência é próximo da vítima: em 69% dos casos, a violação ocorre dentro de casa. Em 12% das denúncias, o local é a casa do suspeito.
Apenas em 2015, mais de 15 mil boletins de ocorrência foram registrados por pessoas com deficiência no estado de São Paulo.
Segundo a professora e pesquisadora Izabel Maior, é necessário maior controle desses dados de violência. "A nova lei brasileira da inclusão, que é de 2015, prevê que os casos de violência sejam de notificação compulsória. O sistema de saúde, ao atender uma mulher que sofreu violência, tem obrigatoriamente que preencher um documento chamado 'ficha de situações de agravos de notificação compulsória'", destaca.
Negligência e violência psicológica lideram a lista dos abusos denunciados no Brasil. Mesmo com um módulo dedicado ao atendimento a pessoas com deficiência, o Disque 100 ainda carece de dados com o recorte de gênero das denúncias. "Nos últimos cinco anos, houve um incremento da informação, o que possibilitou saber um pouco mais sobre os tipos de violência sofridos", constata Izabel Maior.
Problema é global
No âmbito internacional, os dados também são motivo de alerta. Segundo informações de 2013 do International Network of Women with Disabilities (INWWD), 40% das mulheres com deficiência em todo o mundo passam, em algum momento da vida, por violência doméstica. Os números mostram que 16% das mulheres com deficiência no mundo foram vítimas de estupro.
De acordo com Izabel Maior, o relatório mundial sobre deficiência da Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que pessoas com deficiência têm de duas até 10 vezes mais chance de sofrer violência. “No caso das mulheres com deficiência, a questão é ainda mais agravada. Apresenta-se a questão da violência muito mais do que na população de mulheres em geral".
Investimento
A pesquisadora de Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, Taís Victa, afirma que apesar de existirem canais para denunciar agressões, ter acesso a eles ainda é um desafio.
Para ela, que é surda oralizada, é necessário pensar nas características de cada vítima ao planejar e construir redes de proteção. “As pessoas com deficiência estão lutando cada vez mais pela acessibilidade, mas não recortaram ainda a questão de gênero, a questão de ser mulher com deficiência na realidade da violência contra as mulheres”, diz.
A coordenadora da pós-graduação em Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da PUC Rio, Luciene Medeiros, reforça a falta de suporte para que as mulheres com deficiência possam denunciar.
“Cada deficiência traz uma gama de especificidades que o Estado, no campo das políticas públicas, tem que enfrentar”, afirma.
Luciene Medeiros defende ser fundamental que os municípios enxerguem o enfrentamento à violência contra a mulher como objeto de investimento, com orçamento específico. “É fundamental que você tenha legislações para o enfrentamento dessa violência. A Lei Maria da Penha é um belo exemplo disso”, diz.
Para esta questão, tramita no Congresso Nacional, desde 2014, o Projeto de Lei 7371/14, que cria o Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. O texto prevê que o fundo receberá dinheiro do Orçamento, de doações, de convênios e de seus rendimentos para investir em políticas de combate a esse tipo de prática, como assistência a vítimas; medidas pedagógicas e campanhas de prevenção.
A proposta foi criada na CPI Mista da Violência contra a Mulher e aprovada, ainda em 2014, no Senado Federal. Atualmente, está pronta para ser votada no Plenário da Câmara dos Deputados, mas foi retirada da pauta em fevereiro.