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Direitos Humanos

Relatório de inspeção em comunidades terapêuticas aponta violações

Foram visitadas 28 comunidades em 11 estados de todas as regiões e DF
Helena Martins - Repórter da Agência Brasil
Publicado em 18/06/2018 - 20:22
Brasília
O membro do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Lúcio Costa, a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Rogério Giannini, no lançamento.
© Valter Campanato/Agência Brasil

Pessoas contidas pela força ou por meio de medicamentos, alocadas em condições precárias e em lugares distantes, sem comunicação externa e tratadas como doentes. Essas foram algumas das violações de direitos constatadas em uma série de inspeções realizadas pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e Conselho Federal de Psicologia (CFP) em espaços que deveriam promover tratamentos terapêuticos. Os casos foram reunidos no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticos – 2017, lançado nesta segunda-feira (18), em Brasília.

O membro do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Lúcio Costa, a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Rogério Giannini, no lançamento.
Apresentação do relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticos – 2017 (Valter Campanato/Agência Brasil)

Ao todo, foram inspecionadas 28 comunidades em 11 estados de todas as regiões e no Distrito Federal. Para a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, todas as instituições foram reprovadas porque não garantem inserção dos pacientes na comunidade, não estimulam o fortalecimento de laços com a vizinhança nem oferecem atividades produtivas. “Elas são instituições que trabalham com uma ideia de que a pessoa tem que ficar distante por um determinado período de tempo, alguns mais longos e outros mais curtos, mas todos por, pelo menos, 90 dias”.

Duprat explica que o confinamento de pessoas com transtornos mentais contraria a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei de Reforma Psiquiátrica e reforça uma estrutura que o Brasil tem trabalhado para extinguir: os manicômios. Isto porque, com a perspectiva de romper com a lógica manicomial, a reforma, feita em 2001 no Brasil, orienta que a abordagem de pessoas com transtornos mentais ocorra com a menor intervenção possível, valorizando a atenção de base comunitária e não a segregação em hospitais ou o tratamento em manicômios.

Entre muros

O relato de um interno da comunidade Renascer, localizada em São João del-Rei, em Minas Gerais, sintetiza a situação: “Não recebo a vista de ninguém porque minha mãe não tem dinheiro para me visitar. Tem a alternativa de mandar uma carta, que é entregue aberta ao pastor para que seja lida antes de postada. Eu não mando cartas e nem recebo visitas da minha mãe porque não tenho condições de pagar um táxi para ela vir me ver”.

“É uma perspectiva de maximização do lucro. O que interessa ali, para determinadas instituições, é a permanência daquele sujeito na instituição”, critica Lúcio Costa, membro do MNPCT. Para garantir a presença de pessoas nesses espaços, são utilizados expedientes como internações forçadas por meio de “resgate” ou “remoção”, que ocorre quando uma equipe vai à residência da pessoa e a leva para a comunidade, e também a realização de internações involuntárias.

As internações involuntárias estão previstas em lei, mas os requisitos legais para concretizá-las, como existência de laudo médico e obrigatoriedade de comunicar ao Ministério Público da internação em até 72 horas, não estão sendo cumpridos. Apenas duas comunidades terapêuticas inspecionadas informaram seguir tal procedimento. Quanto aos laudos, também somente duas dispunham de documento médico com a autorização para internações.

“Se você considerar que as pessoas entram sem laudo médico, não há comunicação ao Ministério Público e há o resgate, você tem pessoas que, no mais das vezes, estão naquele espaço contra a sua vontade”, afirma Deborah Duprat.

Em Minas Gerais, foi encontrada uma criança de 11 anos entre os internos. No Rio, um adolescente de 13. Ambos haviam sido direcionados para as comunidades terapêuticas por decisão judicial, embora tal medida não seja prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Além da privação da liberdade, pois ele não podia sair porque internado compulsoriamente, ele também não tinha nenhum tipo de garantia em relação ao acesso à educação, que é um direito fundamental da criança”, aponta o procurador Sérgio Suiama. Para os órgãos que elaboraram o estudo, é preciso que o Judiciário avalie a pertinência desse tipo de medida.

O isolamento é reforçado pela localização das comunidades. Das 28 inspecionadas, 17 estão situadas em áreas de difícil acesso ou longe do centro dos municípios, “em geral com pouca ou nenhuma sinalização e sem acesso via transporte público”, conforme o relatório. A situação dificulta não apenas o convívio social, mas também a fiscalização dessas comunidades por parte do Poder Público e da sociedade civil.

Castigo a interno

Sem a fiscalização, medidas restritivas de direitos ilegais tornam-se comuns. Uma delas é a retenção de documentos, “o que endossa esse impedimento das pessoas circularem independentemente de sua vontade”, detalha Costa. Ele relata que os inspetores chegaram a verificar situações em que cartões de bancos eram controlados pelos gestores das comunidades, que acabavam se apropriando de benefícios sociais.

Como nos manicômios do passado, em 16 locais investigados foram identificadas práticas de castigo a internos, como obrigatoriedade de execução de tarefas repetidas, supressão de alimentos, uso de violência física, privação de sono e uso irregular da chamada contenção mecânica (que ocorre quando as pessoas são amarradas) ou química (que se dá por meio do uso de medicamentos).

Lúcio Costa aponta que tais práticas “podem ser tidas como tortura ou tratamento desumano ou degradante”. Não obstante, muitas vezes elas são apresentadas como tratamentos. Caso assim foi relatado aos integrantes da equipe de inspeção na comunidade Reviver, na cidade de Paudalho (PE): “Somos trancadas todos os dias depois do almoço, entre 13h e 14h30, para o que eles chamam de sonoterapia; e, depois, das 20h às 6h. Nos finais de semana é até pior, porque a sonoterapia dura quatro horas depois do almoço. Não importa se você está com sono ou não. Se não estiver, vai ficar trancada do mesmo jeito”.

Outra situação comum é o uso do trabalho como punição, que se confunde com o que o relatório aponta se tratar de uma prática distorcida de laborterapia. Em vez de efetivar o tratamento de doenças psicoemocionais através do trabalho, como ocorre com a terapia ocupacional, são impostas tarefas extras ou aviltantes, como atividades repetitivas. A exploração desse trabalho também viabiliza economia para as comunidades, pois em geral os internos realizam as atividades de manutenção do espaço, como limpeza e até segurança.

Liberdade religiosa

Por meio de entrevistas com usuários, equipes e diretores, bem como da análise de documentos internos, foi constatado que, em ao menos 14 das 28 instituições visitadas, não há respeito à diversidade de orientação sexual e identidade de gênero. Em uma comunidade em Minas Gerais, uma pessoa trans relatou ter sido internada sem ter laudo médico indicando qualquer tratamento.

Os limites à vivência da diversidade está associado ao fato de essas instituições seguirem doutrinas religiosas, o que acaba também provocando violações à liberdade de crença. “Em apenas quatro das 28 comunidades terapêuticas visitadas, é possível afirmar que não foram presenciadas ou registradas restrições à liberdade religiosa”, diz o texto.

Se, por um lado, a rotina comportamental é rígida, “a desordem administrativa é absurda”, nos termos de Duprat. A procuradora detalha que as comunidades não têm equipe médica necessária à assistência integral e comprova que apenas dez instituições apresentaram alvará sanitário. A ausência de equipes profissionais e, em seu lugar, a presença de voluntários que trocam trabalho por comida e moradia são outros exemplos disso.

“O que nós vimos é escandaloso”, sintetiza o presidente do CFP, Rogério Giannini, que exemplificou os problemas apontando como recorrente, em todas as comunidades visitadas, o uso de medicamento controlado. Ao contrário da abordagem do isolamento e pautada em forte medicação, ele diz que “nós acreditamos na rede substitutiva e na política de redução de danos como estratégia geral”,

Os relatos sobre as unidades inspecionadas em cada estado serão remetidos aos órgãos competentes, como Ministério Público Estadual e Defensoria Pública. Ao todo, há, pelo menos, duas mil comunidades terapêuticas no país, segundo nota técnica do Ipea de 2017. O número deve crescer, pois em março deste ano o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) aprovou resolução que facilita a expansão dessas instituições.